domingo, fevereiro 09, 2014

Lazer, um produto à venda - EDITORIAL GAZETA DO POVO - PR

GAZETA DO POVO - PR - 09/02

Sociedade precisa avançar no debate sobre o direito ao tempo livre e às escolhas culturais


Enquanto os rolezinhos tiravam sono de muita gente, um assunto, em paralelo, batia à porta, pedindo licença para ser discutido. Pode-se chamá-lo de “direito ao lazer”, como querem os mais exaltados, ou “sociedade do entretenimento”, como apregoam os mais intelectualizados. Qualquer que seja a terminologia, a certeza é de que faltam debates à altura da importância do fenômeno do consumo cultural e uso do tempo livre, equação que nos pegou de calças curtas.

As universidades desenvolvem, ainda que de forma tímida, pesquisas de porte. Mas esbarraram no preconceito acadêmico aos estudos do lazer, da noite e tudo mais que represente desperdício de horas. A tradição marxista impõe os estudos do mundo do trabalho, cacoete difícil de vencer. As investigações são poucas, mas fazem a diferença e contam já com seus expoentes, a exemplo de Luiz Gonzaga Godói Trigo e de Gisela Taschner, ambos da USP, para citar dois. A Trigo se deve, em especial, uma espécie de choque de realidade. Em seus estudos, chama a atenção para o fato de que a chamada “indústria do entretenimento” é a terceira maior do mundo, logo atrás da bélica e da automobilística. Dessa estatística demanda todo o resto. Dinheiro, diz-se, não aceita desaforo.

Ler Trigo é ver descortinar um cenário em que cultura, entretenimento e lazer dividem a mesma cena. Debaixo do imenso guarda-chuva chamado “entretenimento” se abriga o cinema, o turismo, o futebol, a televisão, o jornalismo – as grandes e pequenas artes. O mundo da cultura para consumo é biodiverso, orgânico, entrelaça-se até onde não se imagina. O mais refinado dos escritores, ainda que se declare à margem, uma vítima da tirania da indústria cultural, participa dessa engrenagem em algum momento, tirando dali seus ganhos. Lançou seu livro num shopping? Ponto para a indústria, que o cooptou para suas fileiras.

Outra importância dos estudos de Trigo reside no seu empenho em mostrar como funciona o mundo do entretenimento. O pesquisador alerta que o setor não é mais regido pela audiência imediata, pela venda em unidades – livros ou discos – ou de ingressos, mas pela influência que gera. Os chamados “medidores de influência” ainda estão engatinhando, mas são fundamentais, inclusive, para pôr à mostra o poder de fogo de produtos culturais que não caem no paladar da massa, mas que movem os formadores de opinião e geram virais na sociedade.

O mundo do lazer, no entanto, incorre no risco de ser entendido de forma simplista. Eis o perigo. O lazer não é um mero instrumento passivo para se chegar à qualidade de vida, à saúde, ao bem-estar psicológico ou algo que valha. Se digerido sem mastigação, pode se converter em um peso, tão oneroso quanto a moda, os custos com a boa aparência, a compra de automóveis e o turismo organizado.

O lazer pago virou uma “obrigação”, o que diz muito sobre a maneira como interfere na esfera privada, padronizando comportamentos e paladares. Em resumo, todas as dimensões da sociedade estão mercantilizadas, inclusive a que representava a última trincheira. E esse excesso de licença incide sobre a formação da individualidade e do gosto. Quem discorda, que abra a roda de discussões.

Gisela Taschner, em Cultura, consumo e cidadania, entende esse fenômeno como um novo processo civilizador, a exemplo do que começou a se formar no século 17, quando os bons modos, a etiqueta e a prática da cultura se tornaram condição para pertencer ou não a determinado grupo social. Divertir-se, entreter-se, informar-se viraram extensões do consumo, o que tem um efeito sobre as mentalidades, implica uma ética e incide sobre o conhecimento.

Vistos de forma ingênua, lazer e direito ao consumo viraram a mesma coisa. Visto de forma crítica, o lazer é mais que adquirir um produto ou o comprar o ingresso para frequentar um espaço: é a aquisição monetária de uma experiência predeterminada, ditada pelo mercado, à qual compramos e comemos com farinha. Uma viagem, um livro, a visita a um shopping são um consumo simbólico que tende a seguir uma tabela, oferecer um status, ferindo, desse modo, a natureza da experiência cultural – que é múltipla e incômoda por natureza.

A “lógica mercantil”, diz Taschner, expandiu para fora da fábrica e atingiu a cultura, replicando nessa esfera as leis de mercado. Basta reparar na obrigatoriedade de consumir determinados bens, fazendo do público um reprodutor da experiência ditada pela publicidade. É opressivo. E pouco tem a ver com a cidadania, como se quer fazer acreditar. Talvez não passe de um consolo, em meio aos dias difíceis na cidade grande, pouco contribuindo para a construção do coletivo e para a expansão da criatividade, o que se busca em horas de descuido.

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