sexta-feira, fevereiro 28, 2014

CNPJ, a sigla que quer dizer tormento - SERGIO BARCELLOS

O GLOBO - 28/02

Registrar uma empresa, colocar dinheiro do próprio bolso, contratar empréstimos para crescer, correr riscos e gerar mais empregos vira aventura


Um dia, conversando com Lord Melbourne, a rainha Victoria pediu-lhe que definisse o que fosse governar. Com uma clareza de ofender a vista, ele respondeu em uma frase: “Governar, Majestade, é defender a sanidade da moeda e a santidade dos contratos.” Ponto.

Por aqui, porém, isso parece cada vez mais difícil. Não só porque a moeda ameaça deixar de ser sã — depois de anos de dolorosa travessia do deserto iniciada em 1994 com o Plano Real — como também porque contrato agora tem prazo de carência, igual a remédio, e só vale até o próximo “marco regulatório” do próximo governo.

Neste ambiente, registrar uma empresa, colocar dinheiro do próprio bolso, contratar empréstimos para crescer, correr riscos e gerar mais empregos vira aventura no simples instante em que é emitido o famoso cartão do CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica). E não importa qual o ramo de negócio. Em todos — sem exceção —, nosso audaz empreendedor vai dar de cara com quase 39% de impostos, o que o obrigará a ter que trabalhar de janeiro a maio de cada ano, todos os anos, para pagar o pedágio do Leviatã, do Hobbes.

Bem, ainda sobram cerca de sete meses para se virar e manter vivo o empreendimento. Coitado, não sabe o que o espera: de saída, o espera um pandemônio fiscal e trabalhista que muda completamente de sentido a cada 30 dias, ou menos, na medida da torrente de atos e instruções normativas que regulam a matéria, nos planos federal, estadual e municipal. A fome do Leviatã não tem limites.

E junto com o CNPJ vem a sopa de letrinhas: PIS, Cofins, FGTS, INSS, Dirfs, IPI, ICMS, ISS, IPTU, DUT, IPVA, IRPJ etc, embaralhada com alíquotas que podem variar da noite para o dia, mais os ditames da jurisprudência dos tribunais superiores, mais uma coorte de taxas criadas do nada, mais a parafernália dos carimbos, assinaturas, a nova invenção, entre outras, do reconhecimento de firma “por autenticidade” (uma contradição em termos), mais um desfile de invenções diabólicas do tipo. E, rapidamente, as pessoas e o tempo despendidos para controlar tudo isso superam largamente aquele dedicado aos objetivos sociais do empreendimento.

Tudo se passa como se o inferno estivesse em paz, pois todos os demônios hoje resolveram se reunir em torno da empresa e de seu dono.

Mas o pior mesmo é ser empresário rural. De grãos, então, é coisa para louco declarado. Além de ter que arar, adubar, plantar, defender-se das pragas, rezar para chover (ou não chover), colher, armazenar, transportar, vender e embarcar, ainda há, quem diria, outros problemas julgados “menores” pelos sucessivos governos do país: não há onde estocar as colheitas, não há ferrovia, não há navegação fluvial e, quem diria, não há porto que consiga escoar a produção a tempo e a hora. Mas há, claro, todo o resto aí em cima, que o Leviatã não brinca em serviço e está sempre disposto a inventar um novo carcará para bicar o fígado do Prometeu da vez. Todos os dias, 365 dias por ano. Bicada a bicada, pedaço a pedaço, até a hemorragia final.

Difícil imaginar que isso vá dar certo. Não vai. Estamos chegando ao limite da capacidade individual de resistência dos empreendedores privados do país. E o ambiente hoje está longe, muito longe, de lhes ser propício. Na verdade, no fundo de sua alma, nossas autoridades, em praticamente todos os níveis, não parecem gostar muito deles.

Fingem que gostam, mas desconfiam. Desconfiam de tudo. Desconfiam de suas crenças, desconfiam de sua criatividade, fazem ouvidos de mercador aos empregos que eles proporcionam, desconfiam até de sua afluência econômica quando se revelam capazes de superar o imponderável das circunstâncias que os cercam.

Ao fim e ao cabo, de desconfiança em desconfiança, chegamos até ao paroxismo de imaginar que a maior empresa do país — aquela que a própria União governa — possa continuar a sobreviver ao esquema maldito de perder mais dinheiro na exata medida do aumento de suas vendas. Ou seja, quanto mais vende, mais perde. Se fazem isso com a Petrobras, imagine-se o que não fariam com um empresário privado qualquer.

Até que isso tudo mude — se é que um dia muda — CNPJ no Brasil 2014 é coisa para doido. E, quando todos os doidos tiverem desistido, quando o mar de dificuldades e de problemas tiver se imposto, então, todos seremos funcionários públicos.

Mas não nos iludamos: nesse momento será para esse novo (e único) estamento da sociedade que o Leviatã voltará os seus olhos. E a sua fome. Já aconteceu em outros países e em outros períodos da História. E todos nós, mais o país em torno, nos transformaremos em uma horda de funcionários públicos. Inexoravelmente, e cada vez mais pobres.

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