sábado, novembro 23, 2013

O bolso do público - ARNALDO BLOCH

O GLOBO - 23/11

A prática da boa parceria entre os fornecedores e consumidores de serviços no Rio só faria bem


Sempre que um texto mexe com o bolso do público, a coisa se reflete nos instrumentos de medição de leitura dos sites e das redes sociais. Foi assim com a última crônica, “Ganância”, publicada aqui, cujo assunto é o abismo entre os preços cobrados e o respeito devido ao cliente nos restaurantes do Rio, principalmente os da Zona Sul, que tantas vezes se querem mais nobres, sem sê-lo. Acostumado a cifras de audiência dentro da média dos que tentam caminhar contra o vento do senso comum, fiquei pasmo ao constatar que 9,7 mil pessoas clicaram no botão “curtir” do site do GLOBO, multiplicando o texto pela malha do Facebook. Além disso, foi o mais lido de Cultura por três dias.

Os e-mails e comentários são o capítulo seguinte. Senti um certo medo ao ser saudado, pela maioria esmagadora de leitores, como um super-herói, representante dos comensais humilhados e dos bebedores ofendidos. Fiquei muito agradecido, mas a sombra da unanimidade pesou: sem levar porrada, o que restará de minhas opiniões?

Respirei aliviado quando um indivíduo cujo nome não vou citar (para preservar sua, digamos, biografia) publicou, numa saraivada, quatro comentários em minha página no Face. O homem declarava-se meu leitor e admirador de meu livro para, em seguida, destilar sua decepção com o “papelão” que eu estava fazendo.

De acordo com o leitor desiludido, eu reduzira todos os comerciantes da cidade a chupa-sangues. Que violência! Só porque escrevi, na crônica em questão, depois de dar exemplos estarrecedores, que os patrões de restaurantes cariocas, no fim do dia, davam “gargalhadas de Drácula diante do caixa”?

Expliquei ao leitor comerciante o que significa uma hipérbole, exagero retórico com função de apoio figurativo a uma ideia, recurso muitas vezes carregado de humor. O homem, claramente, estava levando ao pé da letra, como informação factual, uma caricatura.

Ele partiu, então, para seu ataque mais frontal: não imaginava que eu fosse “tão fascista”, pois, na Alemanha, tudo começou assim: “os comerciantes eram os culpados e, de repente, os judeus estavam indo para campos de concentração”. Ora, que eu saiba, a palavra “comerciante” designa uma atividade exercida, desde a antiguidade, por gente de todas as tribos, povos, religiões, e, futuramente, nacionalidades, etnias, culturas, crenças ou descrenças. Ainda está para nascer uma etnia do comércio. Ou uma espécie composta só de filósofos. Ou uma nação de advogados ou de políticos.

Ao leitor insultado minhas palavras eram pavio curto para uma insurgência contra o “povo dos que vendem comida e bebida”, esse povo que aparentemente congrega, no Rio, portugueses, árabes, judeus, nordestinos, islamitas, italianos, espanhóis, hindus, gaúchos, argentinos, japoneses e seus respectivos descendentes cariocas de todo o Brasil e do mundo inteiro.

A maioria, tenho certeza, quer trabalhar com esmero e honestidade. Mas predomina, hoje, nos pontos de maior afluência de consumo gastronômico carioca, uma mentalidade de cadeias e marcas que, turbinadas pelo “Milagre Fluminense” (a tríade Copa-Olimpíadas-Petróleo) e pela pouca concorrência de base, perdem a medida em suas práticas e fazem do desleixo uma regra enquanto o caixa continuar a registrar. O mundo já se acostumou com a mais-valia, mas a megavalia é difícil de engolir e não combina com nenhum ideal de evolução. Essas cadeias “monetizam” tudo, esquecendo-se de que o cliente quer uma parceria mais decente com as casas que frequenta. Parceria que se mede em delicadeza e consciência de que o dinheiro que investe ali vale algo.

E que, para vender um serviço de qualidade, é preciso que haja qualidade, e não só sua percepção insuflada pelo marketing. Pois, quando vier a concorrência brava, a percepção cessa e a casa cai. Rezar por essa prática pelo menos a título de exame ético faria bem aos donos de restaurante do Rio, e também à cidade e a seu povo.

Recebi também um e-mail da dona do Bazaar, esclarecendo que o dosador estilo guilhotina para vinhos destina-se a garantir a qualidade da bebida. Perguntei a ela, com toda a candura, que relação poderia ter um dosador com a qualidade do líquido, e ela, depois de pensar bem, admitiu: nenhuma relação. Insistiu, porém, que muitos clientes queriam ter certeza de que estavam bem servidos de acordo com as porções em mililitros normatizadas no cardápio. Perguntei se houve um levante de clientes no restaurante exigindo o dosador, e adicionei as interjeições “rsrsrs” e “kkk” para não ser mal-interpretado. Recebi de volta um simpático “hahaha” e a confissão de que não chegou a haver um panelaço reivindicando dosador. Ah, que bem faz um pouco de humor na crítica.

Ao meu leitor comerciante furioso (que bloqueei no Facebook por me insultar pessoalmente num espaço que é social), peço exatamente isso: que se sirva de uma dose balanceada de humor, autocrítica e cabeça aberta. Com medidor, de preferência, que é para não entornar o caldo.

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