quinta-feira, outubro 10, 2013

Maldito seja o carro - MARIO SERGIO CONTI

O GLOBO - 10/10

Metrôs e trens são escassos, ônibus parecem feitos para carregar gado, bólidos atolam em ruas coaguladas


De há muito advertimos o Partido Comunista da China acerca dos malefícios dos automóveis. Debalde. A República Popular continua a ser o maior produtor de carros do mundo, tendo fabricado mais de dez milhões até agora neste ano. Os Estados Unidos estão em segundo lugar, em terceiro o Japão, e aí vem o Brasil, que fará quase quatro milhões de veículos até dezembro. Por quê?

Porque é uma aspiração nacional. Há pouco, o vice-presidente Michel Temer a expressou assim: “Enquanto o cidadão puder ir ao supermercado, botar o filho na escola e comprar um carro, a economia do cotidiano não mudou”. Tinha razão Antonio Carlos Magalhães quando dizia que Temer parece um mordomo de filme de terror — a sua frase tem um quê sinistro. Para o vice, queremos comida, colégio e carro. A casa, a saúde, o saneamento e o transporte em comum ficam para o Dia de São Nunca. Como tem sido assim, dobrou o número de automóveis na última década.

Publicado agora nos Estados Unidos, “O carro do povo — uma história global do Fusca” ajuda a entender a concepção de Temer. Bernhard Rieger conta no livro que, no início dos anos 30, a Alemanha era um dos países menos motorizados da Europa. Também pudera, ela usufruía do melhor transporte público do continente, todo ele assentado em trilhos.

Ao chegar ao poder, Hitler decretou que os trens “acabaram com a liberdade individual no transporte” e concebeu o Volkswagen, o carro do povo. No mesmo elã vieram o rádio do povo (Volksempfänger) e a geladeira do povo (Volkskühlschrank). Povo que não incluía os judeus, proibidos em 1938 de dirigir automóveis.

O Fusca foi desenhado por Ferdinand Porsche para levar um casal e três filhos, usar pouco combustível e custar o preço de uma moto. Para que ele circulasse, o nazismo teceu a malha rodoviária que é um orgulho germânico, ainda que Angela Merkel tenha perdido votos devido ao seu desgaste. O limite de velocidade foi abolido porque tolhia a liberdade do motorista ariano.

Remodelada durante a guerra para produzir veículos militares, a fábrica do Fusca usou trabalho forçado. Foi uma das poucas a sobreviver aos bombardeios dos Aliados. Como as rodovias estavam prontas, a Alemanha empobrecera e o Fusca fora testado, o carro do povo acelerou depois do nazismo.

Quando chegou ao Brasil, o Volks não viu rodovias nem metrôs, ônibus ou ferrovias decentes. Ele se virou e virou o mais vendido. A ideia de carro do povo morreu e o Fusca saiu de linha. Seis décadas depois de ele ter chegado, metrôs e trens são escassos, ônibus parecem feitos para carregar gado, bólidos atolam em ruas coaguladas.

Mas vigora a mística de que o carro é o Santo Graal. E tome corte de impostos, prestações em 48 meses, imagens sexy que o associam à limpeza e à fluidez. O indivíduo imagina que é livre numa solitária metálica que solta fumaça e mal se mexe. Porque pior do que ela só a cela coletiva do transporte público. Restou apenas a liberdade de amaldiçoar, como fez W. H. Auden num de seus últimos poemas, traduzido abaixo.

Uma praga

Foi de dor o dia em que Diesel

concebeu o motor sombrio

que te deu vida, invenção vil,

ainda mais execrável e cruel

do que a câmera, monstro de metal,

credo e crise da nossa Cultura,

cruz da nossa Comunidade.

Como a lei ousa proibir

o haxixe e a heroína

e permite o seu uso, que infla

egos murchos e miúdos?

O vício só faz mal

aos viciados, e você envenena

o pulmão de inocentes,

seus urros arrasam gente mansa,

em ruas arruinadas centenas

morrem ao acaso dia a dia.

Inventores, vocês deveriam

se enforcar de vergonha.

O seu engenho fez prodígios,

fez os homens irem à Lua,

fez computadores trabalhar,

fez bombas “inteligentes”.

É um escândalo lento

que vocês não tenham tempo,

que sequer tenham sonhado

o que todo ser são sabe ser o certo:

uma silenciosa, sem cheiro

e suave charrete elétrica.

2 comentários: