sábado, junho 01, 2013

Recomeço - KÁTIA ABREU

FOLHA DE SP - 01/06

Dívida social histórica não é algo que deva ser assumido somente por um setor da economia


O país vive uma espécie de sentimento de culpa que parece inesgotável. Quanto mais faz para equacionar o que, genericamente, se considera dívida social, maiores são as demandas.

Atropelos à lei, invasões de propriedades e questionamento do Estado de Direito tornam-se corriqueiros, como se o supremo critério de tudo fosse uma dívida social considerada impagável.

Não se pretende, aqui, minimizar ou desconhecer problemas históricos em relação a indígenas, negros ou brancos de extração social baixa, mas solucionar esses problemas a partir de uma determinada linha de corte.

O país não pode ficar tributário de imprecisões, digamos intemporais, sob pena de seu futuro ser anulado em nome de uma concepção que só olha o presente pelo retrovisor do passado.

Se analisarmos a questão indígena, é evidente que o ocorrido não pode ser redimido pela volta à situação anterior a 1500. Seria como dizer que a história brasileira não existe nem tem legitimidade.

Nesse caso, todas as propriedades existentes deveriam ser expropriadas em nome da dívida histórica, a começar por Salvador e Rio de Janeiro.

Salta aos olhos o absurdo de tal contexto. Ciente disso, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu como linha de corte o marco temporal da Constituição de 1988. Deve haver um recomeço.

Se esse recomeço não ocorrer, continuarão a se repetir tragédias como a de Sidrolândia, em que um brasileiro índio -poderia ter sido um branco- foi morto.

E vidas humanas não podem mais se perder pela ação de movimentos sociais que incitam à violência e desrespeitam a lei. Recusam-se a recomeçar.

Quando os constituintes reconheceram que os quilombolas eram proprietários de terras sobre as quais detinham a posse em 1988, repararam injustiça histórica.

É claro que não pensaram em uma ressemantização da palavra, ampliando seu alcance a escolas de candomblé ou terreiros de umbanda, que não são áreas remanescentes de quilombos.

Polêmicas como essa, porém, estão produzindo uma situação não só de insegurança jurídica, mas, sobretudo, de relativização da propriedade privada.

Apenas sociedades que reconheceram esse direito desenvolveram-se historicamente. As que o negaram ou desconheceram sucumbiram à miséria, à falta de cultura e a autoritarismos dos mais diversos tipos.

O que pode vir a ser considerado dívida social histórica não é algo que deva ser assumido somente por um setor da economia. Tampouco pode-se tê-lo por algo transmitido a sucessivas gerações.

Se há o reconhecimento de uma dívida, ela deve ser paga pelo conjunto do país e não, exclusivamente, pela agricultura e pela pecuária. E essa responsabilidade não pode ser assumida indefinidamente por várias gerações.

Um empreendedor rural ou um proprietário urbano com títulos de décadas, reconhecidos em cartórios e registros civis, não podem se tornar individualmente responsáveis por problemas históricos que se pretende eternizar.

A responsabilidade deve ser circunscrita no tempo. Se o país não o fizer, brasileiros que produzem riqueza continuarão reféns de uma história que não conseguem superar.

O governo atual reconhece certamente essa dívida e a está pagando por meio de programas sociais como o Bolsa Família e o PAC habitacional. São ações corretas e justas para enfrentar o problema, sem discriminar nenhum setor.

O Bolsa Família contempla os que, independentemente de raça, precisam de auxílio para que, no futuro, seus filhos tenham condição de exercer a igualdade de oportunidades.

O PAC, por sua vez, volta-se para a ideia da propriedade privada, cuja expressão principal é a casa própria, por todos almejada.

Eis por que, se o Estado brasileiro quer uma sociedade justa, deve construí-la a partir de uma linha temporal de corte apoiada por políticas sociais que alcancem os mais desprotegidos, possibilitando o recomeço.

Só as sociedades que praticam o perdão e o reconhecimento são capazes de trilhar o caminho do futuro.

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