quarta-feira, junho 12, 2013

Para entender o governo Dilma - LOURDES SOLA

ESTADÃO - 12/06

Nas últimas semanas se acumulam as evidências de que o governo está numa encruzilhada, obrigado a definir novos rumos, que não se restringem apenas à revisão de sua trajetória econômica. O que chama a atenção são outros desdobramentos, que, somados ao quadro econômico, indicam uma reconfiguração das forças que compõem os cenários doméstico e internacional. Sim, há o PIB insignificante, a resiliência da inflação e a queda do superávit comercial, que de maio de 2012 ao de 2013 se reduziu em 72%, de US$ 27 bilhões para US$ 7,8 bilhões. O que surpreende são dois outros aspectos, subdimensionados pelos assessores do governo. Por um lado, a quantidade de tópicos em que a revisão de rumos se apresenta como uma ordem de comando do tipo "meia-volta, volver!". Por outro, multiplicam-se as frentes políticas e econômicas em que o governo é desafiado a exercer novas formas de autoridade política.

Vale a pena refletir sobre isso, pois, tomados conjuntamente, criaram condições quase experimentais para observar a capacidade do governo Dilma de reinventar-se, em resposta a novos desafios. As encruzilhadas são, por definição, conjunturas excepcionais, às quais não se aplica a expressão "ponto fora da curva", pois denotam uma confluência de vetores. Testam a capacidade dos governantes de pilotar a nau do Estado em condições em que o recurso ao piloto automático pouco ajuda - seja o da ideologia ou o das retóricas populista e/ou autocrática. Com razão os ingleses, cuja experiência naval é inconteste, definem esse atributo como statemanship, que define um tipo de autoridade que as condições variáveis, imprevisíveis e contingentes da navegação política exigem.

As meias-voltas do trimestre incluem alguns "cavalos de pau". Como o recurso às privatizações na área de infraestrutura, antes tratadas como anátema; a recomposição das tarifas impostas às concessionários das rodovias; a prioridade atribuída à inflação pelo Banco Central; e o foco na taxa de investimento como elemento propulsor do crescimento e da demanda. Tudo isso, somado às desonerações fiscais e à retomada (tardia) das licitações para exploração do pré-sal, aponta para um novo tipo de ativismo estatal, mais abrangente e mais amigável para com o capital privado. Pontos para o governo, não fossem outros sinais de exacerbação de práticas passadas, pelo alto teor de intervencionismo fadado a reduzir a confiança dos investidores. Entre eles: as manobras criativas da Fazenda para inflar ficticiamente o superávit primário; a indisciplina fiscal do governo; e o fato de que as desonerações fiscais respondam mais aos lobbies em Brasília do que a uma política fiscal sustentável e coerente com a nova política monetária. Há também a omissão do governo diante do dever de prestar contas à opinião pública e aos beneficiários do Bolsa Família pela insegurança provocada por um órgão subestatal, com apoio na retórica conspiratória de sempre.

Mas a súbita multiplicação de frentes nas quais o governo é desafiado a atuar preocupa: elas estão a exigir novas formas de autoridade política, e não um pouco mais do mesmo receituário. A contestação do poder de agenda do Executivo por um Congresso cujo poder de veto é mobilizado pelo principal parceiro do governo, o PMDB, é uma delas. Há uma segunda frente que torna incontornável a revisão profunda de uma das dimensões de maior peso geoeconômico da política externa, ou seja, a política comercial. O sinal mais claro é a súbita reversão de expectativas de uma parcela do empresariado doméstico, agora a favor de maior liberalização comercial, ou seja, da exposição aos ventos da concorrência internacional, porque confrontado com um duplo choque de realidade.

Por um lado, a perda de mercados na região, nos EUA e na Europa expõe os déficits de competitividade e a precariedade do tipo de proteção estatal que praticamos, numa economia internacional mais competitiva. Por outro, o desempenho do México, do Chile, da Colômbia e do Peru ilustra as vantagens de políticas liberalizantes que respaldam a proliferação de acordos bilaterais e de alianças regionais alternativas ao autarquismo do nosso maior parceiro no Mercosul e os do eixo bolivariano. A reconfiguração do contexto internacional se completa com os fatores que revigoram a força gravitacional dos EUA: a recuperação da economia; a valorização do dólar; os avanços tecnológicos na área energética; e a prioridade atribuída aos acordos regionais e bilaterais. Esses desdobramentos obrigam a repensar nossa política industrial e nossas parcerias, bem como a aposta exclusiva no multilateralismo.

Correções de rumo, quando coerentes e sustentáveis, atestam uma das virtudes da democracia, decantada pelos clássicos: sua capacidade de autocorreção. Os procedimentos democráticos precipitam mudanças que revigoram a autoridade pública e a qualidade das respostas aos desafios econômicos. Sob a condição de que seus principais motores - a concorrência política e a participação - não sejam inibidos como na Venezuela de Chávez e na Argentina dos Kirchner.

A julgar pelos desdobramentos do semestre, tenho poucas dúvidas sobre a eficácia politicamente persuasiva dos desafios econômicos. Minha dúvida diz respeito à forma pela qual o governo se posiciona diante da encruzilhada. Pois os bons ventos só serão úteis se seus formuladores procederem como em A volta ao mundo em 80 dias, de Julio Verne, em sua versão cinematográfica. Nela, Passepartout, o ajudante francês do aristocrata inglês Fogg, é representado por Cantinflas. Para chegar a tempo de cumprir com o prazo da aposta do patrão, vai jogando um a um os objetos acumulados no balão em que se encontravam, para aproveitar os bons ventos sem comprometer a leveza do veículo - e o sucesso da aposta. Pois, como lembra Montesquieu, "não há bons ventos para naus sem rumo".

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