sexta-feira, abril 05, 2013

Vale o escrito - NELSON MOTTA

O GLOBO - 05/04

Por conta de uma interpretação esdrúxula, não teríamos biografias nem de Hitler; bastaria seus herdeiros reivindicar seus direitos no Fórum do Rio de Janeiro


No Brasil democrático são cada vez mais frequentes as notícias de mentirosos, caluniadores e difamadores de jornais, revistas, rádios, televisões e blogs condenados na Justiça a pagar indenizações que lhes castigam o bolso e a retratações humilhantes que os desmoralizam publicamente. Isto vale para qualquer meio de comunicação. Menos para os livros, que ainda podem ser proibidos judicialmente pelos biografados ou seus herdeiros a qualquer momento, por qualquer motivo.

Essa aberração tipicamente brasileira está em vias de extinção com a nova lei que libera biografias, já aprovada na Câmara, deixando um rastro de destruição na história e na memória nacional. O livro é livre, mas cada um responde na Justiça por suas palavras. Vale o escrito.

Há alguns anos fui processado por um personagem secundário da Jovem Guarda que queria ser indenizado porque membros do seu conjunto foram citados no meu livro “Noites tropicais” como acusados por um juiz carioca de corrupção de menores, em 1965. Mesmo com a advogada da editora apresentando testemunhos e farta comprovação do noticiário de imprensa da época, fomos condenados: a indenização era de tal ordem que quebraria a editora, uma das maiores do Rio de Janeiro.

A juíza reconhecia que as provas eram verdadeiras, mas alegava que, pela lei em vigor, só o próprio biografado, ou referido em uma biografia alheia, tem direito à publicação de sua história pessoal. Ponto final. Mesmo se for um criminoso condenado, mesmo se a sua história for pública. Por ela, não teríamos biografias nem de Hitler, bastaria seus herdeiros reivindicarem seus direitos no Fórum do Rio de Janeiro. Na instância superior ganhamos por 3 a 0, e o processo foi encerrado.

Diante disso, antes de escrever “Vale tudo, o som e a fúria de Tim Maia”, fizemos um acordo com o herdeiro do Síndico. Cedi uma fração dos meus royalties, a editora cedeu dos seus, e lhe demos um “levado” que o fazia sócio do livro. Era mais jogo pagar um “direito de imagem” ao herdeiro do biografado — sem direito a censura prévia ou posterior — do que enfrentar um processo caro e perigoso.

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