sábado, março 30, 2013

Página virada - LEONARDO CAVALCANTI

CORREIO BRAZILIENSE - 30/03

Rita, Lenira, Francisca, Tiana, Lucélia, Delaíde e Durcelene. Todas mulheres, todas empregadas ou ex-trabalhadoras de casas de famílias. Todas personagens da série especial “As domésticas que a abolição esqueceu”, publicada por este Correio em novembro do ano passado.

Há quatro meses, as reportagens de Renata Mariz, da editoria Brasil deste jornal, apresentaram os números de uma realidade trágica para os empregados domésticos, calculados em 6,6 milhões de pessoas, 70% delas sem carteira assinada. Marcas de um passado escravista, iniciado em 1516 com as mucamas trazidas pelos portugueses. Um passado que, até a semana passada, estava entranhado na alma de cada um dos brasileiros. Mas que agora é página virada na história do desrespeito.

Levantamento recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontou que 93% dos trabalhadores são mulheres e 61% delas, negras. Na média, elas têm três anos a menos de estudo do que as mulheres ocupadas em outras e funções. No Nordeste, a informalidade aumentou entre 2010 e 2011.

A série de reportagens foi publicada por três dias e era reforçada a cada avanço do projeto aprovado esta semana no Congresso. Nas edições especiais, o jornal apresentou a evolução dos direitos trabalhistas para as empregadas, esquecidas dos artigos da Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943. O serviço delas só foi reconhecido em 1978, mesmo de forma precária.

História
Depois da Constituição de 1988 e de uma lei de 2006 que garantiu férias de um mês — antes, tinham 10 dias a menos —, chegou a vez da proposta de emenda (PEC), analisada na tarde da última terça-feira pelo Congresso Nacional. A aprovação do texto, por mais histórico e revolucionário, apenas igualou os direitos das mulheres em atividades domésticas com os dos demais trabalhadores brasileiros.

Tratadas por eufemismos como “secretária” ou “ajudante do lar”, as empregadas sempre foram relegadas a um quarto minúsculo. Coisa de país subdesenvolvido, que, ao longo da história, deixou os próprios filhos e filhas sem horas extras, férias, INSS ou mesmo licença maternidade. Agora, parte dos patrões apenas se preocupa ficar legal diante das novas regras — básicas, diga-se. Tal grupo, se não silenciou, reclamou, e muito, da aprovação do texto pelos parlamentares.

E aqui a grita não foi apenas dos retrógrados — como a turma favorável ao pastor Feliciano e aos discursos antiquados, homofóbicos ou racistas. Mas também dos modernetes, capazes de buscar e defender direitos civis em praça pública e incapazes de olhar para dentro da própria casa — e para a pessoa responsável pela comida, roupa e, em boa parte das vezes, pelo filho pequeno. Um detalhe: mais de 250 mil meninas trabalham em casas de família. Meninas expostas a jornadas longas de trabalho e a abusos de todas as ordens.

Depois da série de reportagens, este jornal cobriu de forma efetiva todos os passos do projeto no Congresso, dando destaque em todas as tramitações do texto. O trabalho chegou ao fim com a manchete da última quarta-feira: “Brasil aprova, enfim, a segunda abolição”. Melhor para Rita, Lenira, Francisca, Tiana, Lucélia, Delaíde e Durcelene. E para a sociedade, mesmo que uma parte das pessoas ainda não tenha se dado conta da revolução do texto aprovado esta semana.

Outra coisa
Análises apressadas relacionando a saída de mulheres do mercado de trabalho doméstico com o desemprego apenas atrapalham a força da nova lei. Nos dois primeiros meses deste ano, 113 mil domésticas deixaram a atividade, segundo dados do IBGE. Para os analistas apressados, contribuíram para os números o peso dos salários das domésticas no orçamento dos patrões e a ampliação dos direitos trabalhistas. Mas, segundo técnicos do próprio IBGE, a história é outra: as mulheres deixaram o trabalho em casas de família por conta do aumento da escolaridade, provocando a fuga para áreas que requerem mais qualificação e melhores salários.


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