O GLOBO - 23/03
Não é por coincidência que os maiores tiranos do século 20 foram homens de vida ascética, às vezes monástica, como Hitler, Salazar, Stalin, Mao, Franco, Pol Pot e Pinochet
Tenho observado que, na imprensa, nos livros, ou em simples conversações, cada vez mais preferimos usar a palavra planeta para falar de onde nos encontramos. Arrisco dizer que esse é um progresso objetivo na história da humanidade. Universo é uma designação metafísica, envolve o que não sabemos. Mundo é abstrato demais, pode representar tanto um vasto território, quanto o pequeno espaço de nossa vida e de nossa imaginação. Planeta, não. Com planeta, não há equívoco possível, é nessa palavra concreta que vivemos, agoniados com o que acontece à nossa volta, sensíveis às suas circunstâncias, dentro dos limites dela.
Como é mesmo difícil viver, em qualquer época que seja, temos sempre a impressão de que estamos vivendo o pior momento da história da humanidade no planeta. É isso que gera a principal narrativa de conservadores e progressistas. Segundo Lévy Strauss, para os conservadores a idade de ouro está num passado cujo desaparecimento lamentamos melancolicamente. Para os progressistas, a idade de ouro está no futuro, em nome do qual devemos fazer sacrifícios no presente. Nenhum dos dois partidos se dá conta de que a idade de ouro é hoje, o tempo que nos foi dado viver no planeta.
Shakespeare que, ao lado de Dostoievski, Proust e Machado, escreveu quase tudo que se precisa saber sobre a humanidade, deve ter percebido esse equívoco. Desconfio disso pela referência a “tempos difíceis” em várias peças passadas em tão diferentes épocas e lugares – Falstaff reclama do tempo em que vive (“Que tempos são esses?”), o Príncipe de Verona acusa o tempo presente pela tragédia de Romeu e Julieta, Hamlet se atormenta com o “nosso tempo fora do eixo”.
Desprezo esse tipo de acusação contra o pobre do tempo indefeso. Mas existem situações excepcionais em que ela se torna compreensível. Uma guerra, um desastre natural, uma peste, um regime de opressão. Esse último nos justifica dizer que, pelo menos para minha geração, os anos entre 1969 e 1974 foram os piores da ditadura e portanto os piores de nossas vidas. Um tempo que eu gostaria de não ter vivido.
Para vivermos um tempo como aquele, devemos estar preparados para enfrentar ou conviver com o fato de que tudo em nossa vida estará impregnado pelo desastre e pela tragédia que ele pode provocar.
Ainda sobre Shakespeare, o poeta Hans Magnus Enzenberger, um dos autores que andamos descobrindo durante aqueles anos de tantas descobertas, dizia que em toda dramaturgia há sempre um protagonista e um ou mais antagonistas, como está convencionado desde os gregos. Menos em Hamlet, onde o herói se debate contra o mundo (eu não disse planeta). Ele não tem antagonistas pois seu obstáculo, a razão de sua loucura, dor ou tormento, é o próprio mundo em que vive. E como Hamlet se debate contra o mundo, ele não tem tempo para viver. Jan Kott, em “Shakespeare, nosso contemporâneo”, o melhor livro sobre o bardo e sobre Hamlet, abordado como um herói dos anos 1960, diz a mesma coisa com argumentos mais politizados.
A ditadura enviezou o caminho da cultura brasileiro em direção à metáfora e à alegoria, uma maneira de escaparmos do real que nos horrorizava. Não estou me referindo somente à repressão, à censura, à dor da perda de tantos amigos, de conhecidos ou desconhecidos, de gente que admiramos. Mas também à vida em permanente temor, à angústia cotidiana, à renúncia ao gozo, à extrema solidão de cada um de nós separados uns dos outros. Uma solidão que acabaria na praga de radical e generalizado individualismo, a única saída que parecia nos enobrecer.
E finalmente à auto-castração imposta por um super-ego repressor que cresce e incha na proporção exata de nosso medo e de nossa solidão, de nosso desamparo. Durante muito tempo, mesmo depois da redemocratização do país, ainda me flagrei pensando como se estivesse sob censura, com uma polícia e um ditador internalizados a me observar.
Não é por pura coincidência que os maiores tiranos da história do século 20 foram, antes de serem tiranos, homens de vida ascética, às vezes mesmo monástica, como Hitler, Salazar, Stalin, Mao, Franco, Pol Pot, Pinochet e tantos usurpadores do poder em todos os continentes. Nem sempre o ascetismo é necessariamente ético. A tirania é antes de tudo esse desgosto da vida, a negação do prazer, o bloqueio do inesperado e do surpreendente, a necessidade de controle sobre a felicidade do outro. A vida sem graça, em todos os sentidos que essa palavra possa ter.
Não adianta procurar o sentido da vida, ele não existe; mas essa busca é o único sentido que a vida pode ter. Como ela não é mesmo fácil de ser vivida, é até compreensivo que nos julguemos vivendo o pior dos tempos no planeta. Perdemos então o gosto de usufrui-la, tratamos apenas de tentar sobreviver. Como se sobreviver fosse suficiente e Jean-Paul Sartre tivesse razão ao lembrar a superioridade do ratinho vivo sobre o leão morto.
Ou, ainda melhor, como o destino da barata repelente, na prisão de “Glória feita de sangue”, filme de Stanley Kubrick, que sobreviveria à execução de Ralph Meeker se Timothy Carey não a destroçasse com a palma da mão.
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