quarta-feira, fevereiro 27, 2013

O fim - ANTONIO PRATA

FOLHA DE SP - 27/02

Enquanto chafurda a escova pelo interior da carcaça, pensa no aumento que não pediu, na demissão que não pedirá


Você aperta bem no meio do tubo, e nada: eis o primeiro sinal do fim, mas quem atenta para os primeiros sinais? Além do que, a bisnaga está quase cheia, só ali pelo meio é que murchou: basta pressioná-la em cima, perto do bico, ou embaixo, próximo à base, e a pasta sairá, roliça e lustrosa, nas cerdas de sua escova. A ideia de passar numa farmácia pisca em seu córtex como um distante vaga-lume, para logo desaparecer no cipoal de neurônios.

Cinco ou seis dias depois, contudo, você aperta o tubo na parte de cima, outrora bojuda, e nada acontece. Não é grave, um pequeno remanejamento dá conta do recado: com os polegares e indicadores, vai espremendo da base pro bico. A visão da bisnaga de peito estufado traz algum alívio no curto prazo, mas a informação "preciso comprar pasta de dente" agora está colada, como um Post-it, na tela de sua consciência.

E daí? Há assuntos mais importantes, sempre há: a infiltração no teto do banheiro, o aumento que pretende pedir -a demissão, se tivesse coragem-, uma DR definitiva da qual foge como o diabo da cruz. É lá do fim dessa fila que acena, pequenina, a possível escassez dentifrícia.

A Terra, porém, completa mais algumas voltas em torno de seu eixo: folhas caem das árvores, flores brotam nos jardins, pormenores atingem a maioridade -eis o que você percebe, diante do tubo vazio, hirto como uma fronha secando no varal.

O problema não é mais "preciso comprar pasta" e sim "por que

cazzo não comprei antes?!", mas a indagação traz outras questões de fundo que talvez seja melhor ignorar. Importante agora é escovar os dentes: você apoia o tubo na bancada do banheiro e, com a haste de um pente, o aplaina da base ao bico.

Ao cuspir a espuma na pia, jura que de hoje não passa, mas a convicção se esvai na mesma velocidade que o sabor de hortelã: não há vaga em frente à farmácia, a lojinha do posto está fechada, depois já passam das dez, a reunião é às 11h, o torvelinho do cotidiano te suga e só te devolve ao incômodo na hora de ir para a cama.

O pente é inútil: a bisnaga parece uma fronha passada a ferro. Um rolo compressor seria inútil: não há ranhura ou desvão que não tenha sido achatado. Se Maomé não vai à montanha, a montanha vai até Maomé, você resmunga, então mete as cerdas no bico do tubo, meticulosamente. Elas não saem sequer melecadas, apenas opacas, como se tivessem sido mergulhadas no leite.

Você dorme mal. Acorda desgostoso, antes do despertador. Sabe o que te espera. Não se orgulha do que está prestes a fazer, mas o fará, assim mesmo: abre a gaveta, pega a tesourinha de unha, respira fundo e corta o tubo, de cima abaixo. Enquanto chafurda a escova pelo interior da carcaça, pensa no aumento que não pediu, na demissão que não pedirá, no namoro que se esgarça diante de seus olhos; percebe como a infiltração no teto e a bisnaga estripada são metáforas chinfrins do estado das coisas. O que mais dói, contudo, é saber que ainda não chegou ao fundo do poço: adiante, te esperam a escovação sem pasta, reavivando os resíduos de espuma seca nas cerdas e, para coroar o desmantelo, a escovação com sabonete: aí sim, aí sim é o fim.

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