sexta-feira, janeiro 25, 2013

Remédio pra dar alegria - ARTHUR DAPIEVE

O GLOBO - 25/01


Como qualquer droga, a cultura digital tem efeitos colaterais. A nossa sedação coletiva se reflete no campo das artes


Não é de hoje que vivemos um processo em que tranquilizantes bloqueiam ou amenizam a ansiedade nascida da multiplicação das relações humanas. A rivotrilização, como define um amigo. Nas mídias sociais, então, a falsa obrigação de ficar conectado e disponível gera a culpa de se estar em falta com alguém. Nelas, o mais próximo de conviver com todos é manter contato superficial com muitos. Como qualquer remédio (no caso, para a concentração do conhecimento), a cultura digital tem efeitos colaterais.

A nossa sedação coletiva se reflete no campo das artes, é claro. Na música pop, que traduz de maneira imediata e bandeirosa os humores de um tempo, escutamos aqui e lá fora a preponderância de trabalhos emocionalmente neutros, que remuneram o descomprometimento do artista com o descomprometimento dos ouvintes. Falta tesão, sentimento. Em 1984, quando computadores pessoais, celulares e Internet eram quase ficção científica, uma canção do Kid Abelha já fazia um diagnóstico sagaz dessa alienação moderna: “Eu tenho pressa/ e tanta coisa me interessa/ mas nada tanto assim.”

Um antigo “veneno antimonotonia” está na música que também clama por “algum remédio que me dê alegria”, ou seja, em “Todo amor que houver nessa vida”. É a nona das dez faixas originais do primeiro LP do Barão Vermelho, lançado em 27 de setembro de 1982. Como parte das comemorações pelos 30 anos da banda — na verdade, formada para uma apresentação abortada na Feira da Providência do ano anterior —, o disco foi relançado pela Som Livre em versão remixada e com três faixas bônus no final de 2012. Mais do que nunca, o disco soa como uma porrada na testa.

Diferentemente do que o ressentimento volta e meia ainda propala, o Barão não conseguiu contrato porque Cazuza era filho do presidente da Som Livre: o Barão conseguiu contrato apesar de Cazuza ser filho do presidente da Som Livre. João Araújo relutou. Só foi convencido quando o diretor artístico Guto Graça Mello jogou pesado: “Pior vai ser se seu filho estourar em outra gravadora.” Araújo topou, mas ficou longe. Graça Mello pegou dois fins de semana ociosos nos estúdios e, junto com o primeiro padrinho da banda, o saudoso crítico Ezequiel Neves, produziu “Barão Vermelho”.

Embora pouco entendessem de técnicas de gravação, Cazuza, Roberto Frejat, Maurício Barros, Dé Palmeira e Guto Goffi manjavam o bastante de som para sacar que o resultado das sessões não ficara legal. Isso já não importava muito na época — e agora, com a remixagem e a remasterização, importa menos ainda. O que conta mesmo é que aqueles cinco garotos entre 24 anos (de Cazuza) e 17 anos (de Dé) fizeram do estúdio uma festa, registrando a versão carioca do rock cru, sujo e meio caótico escutado na Inglaterra nos Stones circa “Exile on Main St.” (antes), nos Smiths (simultaneamente ao Barão), no Oasis (um pouco depois) ou nos Arctic Monkeys (bem, bem depois).

Graças à Fluminense FM, “Barão Vermelho” não passou em brancas nuvens, mas foi diminuído pelo sucesso de “As aventuras da Blitz”, lançado coincidentemente na véspera, 26 de setembro de 1982. No ano seguinte, porém, Caetano Veloso cantou em show “Todo amor que houver nessa vida” e Ney Matogrosso gravou “Pro dia nascer feliz”, já do segundo LP do Barão, inferior ao primeiro. A partir daí, a banda — e na cola dela todo o BRock — alcançou mais gente e mais respeito. Caetano, Graça Mello e Leo Jaime assinam pequenos textos no encarte da nova edição de “Barão Vermelho”.

“Todo amor que houver nessa vida” continua gloriosa. “Down em mim” (um blues, gênero antirrivotrilização por excelência), “Billy Negão” e “Bilhetinho azul”, cults na Flu FM, também. No entanto, além da inédita “Sorte e azar”, faixas menos badaladas na época agora saltam aos ouvidos, pintando um painel do Baixo Leblon da década de 80 do século passado, pré-Aids e pré-militarização do tráfico de drogas.

Há o ronco malicioso de “Posando de star”, com Cazuza quase engolindo o “se” do verso “você precisa é dar-se” num efeito hilariante. Escuta-se a guitarra de Frejat, já adulta entre 19 e 20 anos, no solo de “Certo dia na cidade”. E, sobretudo para mim, sente-se a força de uma trinca de canções furiosas: “Conto de fadas”, “Rock’n geral” e “Por aí”. Nas novas audições, o verso que me abriu o supercílio está nesta última, um terno hino à porra-louquice: “Eu tenho um plano que eu não sei achar”. Caraca!

É preciso ter em mente que, se hoje comemoramos 30 anos com o Barão e lamentamos quase um quarto de século sem Cazuza, àquela altura não existia perspectiva de um segundo disco, nem da banda nem de artistas solo dela egressos. Daí a espontaneidade de “Barão Vermelho”. Os caras seguiam, sem vergonha ou ansiolítico, o lema de Frank Zappa: é melhor se sentir mal do que não sentir coisa nenhuma.


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