quarta-feira, janeiro 16, 2013

O que não se pode saber - ROBERTO DAMATTA

O GLOBO - 16/01


Os acusados proclamam suas inocências. Ninguém diz que sabia. Mas quando a promotoria reúne os fatos e constrói a narrativa acusatória, temos um manual de crimes



“Ser humano é não poder saber. Quem nasce onça sabe que morre onça. Quem nasce homem não sabe como morre.”

(Francis Duval)

Houve um tempo em que eu convidava pessoas para palestrar nas instituições em que trabalhava e eventualmente dirigia. Fiz muitas vezes o papel de anfitrião no Museu Nacional e quando ensinei nos Estados Unidos.

A distância imposta pela língua inglesa e por uma audiência pontual e com um comportamento exemplar sempre causava nervosismo nos apresentadores latino-americanos, os quais, como norma, iam perdendo o inglês irreprochável usado no inicio da conferência e, na medida em que a palestra se desenrolava, acabavam falando com um pitoresco sotaque espanhol ou luso-brasileiro.

Observei isso muitas vezes e eu mesmo sofri dessa agonia quando tive como ouvintes antropólogos famosos que eu estudava até as pestanas queimarem e admirava extremadamente. Tais disposições psicocoloniais, promoviam um nervosismo geral que se manifestava na pronúncia, no esquecimento das palavras a serem usadas em inglês (ou francês) e, em alguns casos, em acessos de uma indesejável tremura nas mãos, a ponto de impedir a leitura da conferência ou, como se diz metonimicamente em inglês, do paper.

Lembro-me de um caso exemplar. Um dos meus convidados brasileiros para proferir uma aula em Notre Dame tremia tanto que desistiu da leitura, abandonou as notas e passou a falar de improviso, gaguejando assustadoramente. Mas, a despeito dessas agruras, as ideias que apresentou sobre o tema “A impossibilidade cultural do conceito de cultura” — tão a gosto da antropologia social, essa disciplina que adora messianismos e carisma —, a palestra despertou uma apaixonada discussão abafada tarde da noite, num bar.

Ali, num ambiente mais relaxado, ele me perguntou se tudo havia corrido bem. Disse-lhe que sim, que o encontro havia sido um sucesso, exceto pelo tremor de suas mãos. “Tremor? Que tremor?”, reagiu meu colega em voz alta, visivelmente irritado. “Não houve tremor algum!”, exclamou, encerrando o assunto e pegando com mão firme um pesado caneco de cerveja.

Assustou-me a inconsciência. Esse não saber periférico (senão não teria havido reação) que faz parte de todos os seres vivos, atacando sobremaneira os humanos. Essas vítimas perenes do fazer sem querer ou, melhor ainda, do fazer e não poder saber. Passei pela mesma coisa inúmeras vezes e talvez os homens conheçam mais claramente o vexame de ter um pedaço do corpo fora do controle do que as mulheres, mas o fato é que há coisas que não sabemos.

Ou que não podemos saber. A vida está em outro lugar tanto quanto o tremor do meu colega. Se soubesse como seria minha vida quando tinha vinte e poucos anos, não teria vivido, diz-me um velho companheiro das trincheiras magras. Viver é muito perigoso, afirmava Guimarães Rosa. É a inocência do não saber que permite viver a vida, digo eu.

A negação faz parte da vida humana. Um leão não dorme se pressente uma ameaça, mas um homem dorme feliz mesmo sabendo que cada noite bem dormida o aproxima da morte. A consciência foca em alguma coisa com intensidade e, com a mesma força, reduz tudo o mais a um resíduo a ser esquecido. O foco tem como contrapartida a alienação. Ademais, a vida contém a ignorância que vira destino ou carma justo porque ela tem um fim. O mundo continua, mas eu sei que vou partir. Quando os sinais se invertem, surge um sonho de onipotência próximo da loucura dos crentes.

A consciência do inicio e do fim atrapalha, mas sem ela não teríamos a obrigação de inventar biografias e de não poder ver certas coisas. O final fabrica a origem.

Num país moderno, as estatísticas surgem como tremores não convidados. O governo diz uma coisa, mas os números, que são prova do nosso mais concreto inconsciente comunitário, revelam uma outra. Os acusados proclamam suas inocências. Ninguém, nem mesmo aqueles com um faro mais possante do que o de um perdigueiro, sem o qual não se chega nas altas esferas do poder, diz que sabia. Mas quando a promotoria reúne os fatos e constrói a narrativa acusatória, temos um manual de crimes.

Surgem então o “pibinho” de dona Dilma, a gerentona; o mensalão da casta petista e o caso de Rosemary Noronha. Em cada um desses episódios algo de fora despe algo de dentro. Há um hiato desagradável e, nos caso em pauta, surpreendente, a se julgar pelo quadro de valores de um partido que ia mudar o Brasil e liquidar a corrupção.

Nas democracias a imprensa faz esse papel. Como os tremores e as meias furadas, ela coloca em foco aquilo que os projetos de poder e o populismo seboso escondem. O “fato” é a pista. É o objeto fora do lugar que leva ao criminoso porque o bandido tomou todas as precauções, mas, mesmo nas consciências mais abrangentes, sempre falta algo. O criminoso usa luvas, mas não olha onde pisa. O conferencista controlava tudo menos as mãos que tremiam orgulhosamente como uma bandeira nacional acariciada pelo vento.

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