sexta-feira, janeiro 25, 2013

Acariciando a Comédia Humana - IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO


O Estado de S.Paulo - 25/01



Para Cora Rónai, amiga de tantos anos.

O pacote subiu pelo elevador. Apanhei, era da Editora Globo. Deixei em cima da mesa, enquanto almoçava e na hora do café abri. Surgiram os primeiros quatro volumes da Comédia Humana, de Balzac, numa reedição dentro da Biblioteca Azul. Então, o tempo se misturou e me vi numa tarde de muito vento em Araraquara, com meu pai chegando com os cabelos revoltos e um sorriso enorme. Trazia um pacote. Colocou sobre a mesa do jantar e disse: "Uma preciosidade. Um dos maiores livros do mundo". Meu irmão Luis e eu ficamos em polvorosa. Que livro seria? Líamos contos de fadas e o Tesouro da Juventude e já achávamos o máximo. Minha mãe colocou a sopa, sempre havia sopa na janta (como se diz) em minha terra, cidade quente. Meu pai comia com a colher na mão direita, enquanto a esquerda repousava sobre o pacote. Fazia o teatro dele, o Totó Brandão.

Terminado o jantar, ele tomou leite com farinha de milho e foi sentar-se com o pacote no colo. Abriu e vimos o que provocava tanto encantamento: o primeiro volume da Comédia Humana, editado pela Globo de Porto Alegre. Era o ano de 1948 (vejo, agora, que era a quarta edição do volume 1, datado de 1947) e eu tinha 12 anos, mas aquela tarde ficou em mim. Parte da então chamada Biblioteca dos Séculos, o volume de Balzac foi devorado por meu pai ao longo de semanas, uma hora por dia, ao chegar do trabalho.

Aquele mesmo exemplar e todos os outros da Comédia estão hoje aqui, em casa. Trouxe a coleção após a morte de meu pai em 1993, lembrando que foram comprados um a um, à medida que saíam. Dinheiro economizado do salário de um ferroviário. Livros encadernados em couro marrom avermelhado.

Passaram-se os anos, muitos, e minha filha Rita viu quando cheguei de Araraquara com aquela coleção. Abri espaço nas estantes. Um dia, ao chegar em casa, vi que a Comédia tinha "desaparecido". Estranhei até descobri-la no quarto de Rita. Tinham sido baldeados (para usar uma expressão de ferrovia), porque, aos 25 anos, ela começou a ler e se encantou. Leu todos. Imaginei que Balzac não seduziria nova geração. Enganei-me.

Antes, muito antes daquele dia de vento, na aula de francês do ginásio, mademoiselle Fanny nos fez ler, em francês, um trecho que ela havia trazido, copiado em mimeógrafo (aparelho da pré-história das copiadoras). Cada aluno teve um excerto (palavra da época) do Pai Goriot para ler, traduzir. Aos 14 anos, em meu francês primário e precário, traduzi. O dicionário era o Burtin-Vinholes, de segunda mão. Tudo que me lembro do trecho é que havia um gato que farejava leite e uma mulher com um nariz como bico de papagaio. Sei que foi um dia de vento e chuva, porque o dicionário molhou todo, até hoje conserva as páginas amareladas, enrugadas. Logo depois, Fanny nos mandou ao cinema assistir ao filme O Pai Goriot. Filmes franceses eram exibidos no cine Paratodos, considerado o cinema dos pobres, ainda que fosse o mais belo arquitetonicamente, e eram sempre esperados com avidez, porque eram os únicos em que as atrizes mostravam os seios.

Mas O Pai Goriot era um drama sem nenhum erotismo e acabei envolvido pela atmosfera. Tão diferente dos filmes americanos róseos, em que tudo dava certo. Não tenho certeza se o pai Goriot foi interpretado por Pierre Frenay ou Pierre Brasseur, não encontrei mais referências. Lembro-me dos ambientes soturnos, pesados, das casas imundas. Há uma versão moderna com Charles Aznavour como Goriot. Não vi.

Anos atrás, apanhei o metrô em Paris na direção de Passy. Queria descobrir as ruas e os edifícios que aparecem no início de O Último Tango em Paris. Caminhando, encontrei o que desejava e continuei; afinal, à minha frente caminhava uma jovem japonesa morena, saia curtíssima, pernas queimadas de sol. Súbito, um vento furioso bateu, a saia subiu, ela segurou com as duas mãos, de nada adiantou.

Distraí-me um segundo, ela sumiu. Caminhei e dei com uma escada que descia para uma espécie de pátio cinco metros abaixo do nível da rua. Ela estaria ali? Desci, dei com a placa: Maison Balzac. Ali ele tinha morado, é um museu, Rue Raynouard, 47. Entrei para ver o museu e a jovem. Ela tinha desaparecido. Não importa. Fiquei horas indo de uma sala para outra, porque me emociona olhar manuscritos, ver a letra, as emendas nas provas de livros, as fotos, os móveis. E as mulheres que ele amou e que o amaram? Condessas, marquesas, burguesas. Baixo, gordo e (diziam) desdentado, ele seduzia pela inteligência. E fui também à porta dos fundos, por onde Balzac fugia dos credores.

Tudo isso e aquelas rajadas de vento esses quatro volumes me trouxeram em instantes. Encantamento. Neste dia, fim do ano 2012, sinto a mesma sensação de meu pai naquela tarde de vento. Quatro volumes quadrados, bons para manusear, capas tipográficas, elegantes. Como o mundo não acabou, terei tempo de me deliciar, são livros com 700 a 800 páginas cada um, levíssimos. Ao olhar para esta coleção, me vem ainda a lembrança de Paulo Rónai, intelectual excepcional, história de vida fascinante. Uma vida que ele dedicou às traduções e a Balzac. Tudo vai se ligando, a vida é assim. Digito esta crônica com a mão direita. A outra mão está repousada sobre estes livros quadrados, de cor cinza, assim como vi meu pai fazer, cuidando e acariciando a Comédia Humana e me sentindo ínfimo como escritor.

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