sexta-feira, novembro 30, 2012

Inconstitucionalidade e burocracia nos royalties - CID HERÁCLITO DE QUEIROZ

O Estado de S.Paulo - 30/11


O projeto de lei, aprovado pelo Congresso Nacional, que estabelece novas regras de distribuição dos royalties do petróleo é um monumento à burocracia financeira, a par de violar disposição expressa da Constituição federal. O projeto compõe-se de mais de 150 novas regras, dispostas em 30 páginas do site da Câmara dos Deputados. Por causa dessa extensão, nenhum jornal ou revista pôde publicá-lo integralmente, para o conhecimento da população.

Ora, nenhuma lei desse tamanho pode normatizar matéria alguma com clareza e juridicidade. Ao contrário, textos legais dessa espécie, sobretudo por beneficiarem diversas unidades da Federação e prejudicarem outras, prestam-se a provocar numerosas questões nas vias judiciais. Aliás, várias unidades da Federação se sentem beneficiadas pelo projeto, quando, na realidade, poderão vir a ser prejudicadas, especialmente no decorrer do tempo - pela descoberta de novas jazidas e em face dos avanços da tecnologia na exploração dos recursos minerais em geral.

Todas essas 150 novas normas têm por objetivo - declarado em seu artigo 1.º, parágrafo único - regular um único dispositivo da Constituição da República, aliás, de clareza incontestável. Ou seja, o parágrafo 1.º do artigo 20 da nossa Carta Magna, que assim dispõe: "É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração".

Por mais estranho que possa parecer, essas 150 novas normas não regularão inteiramente a matéria. Tão somente modificarão duas leis anteriores!

Neste passo, é oportuno acentuar que, nos termos do disposto na Constituição federal de 1988, são bens da União, entre outros, não somente os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva, caso do pós-sal e do pré-sal, como também todos "os recursos minerais, inclusive os do subsolo" e os "rios e quaisquer correntes de água em terrenos do seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou que se estendam a Território estrangeiro ou dele provenham ..." (artigo 20, III, V e IX e parágrafo 1.º; artigo 176 e artigo 177).

O escopo do dispositivo constitucional, evidenciado pelo emprego do adjetivo "respectivo" - conforme o Dicionário Aurélio: "que diz respeito a cada um em particular ou separado"; e o Houaiss: "que concerne a cada pessoa, (...) em relação a outras" -, foi o de atribuir a "participação no resultado" ou "a compensação financeira" aos Estados e municípios a) em que esteja situado o subsolo ou o curso d'água ou b) que sejam fronteiros ao mar territorial, à plataforma continental ou a zona econômica exclusiva. Nesta última hipótese, tais bens se incluem no patrimônio da União justamente por serem fronteiros ao seu território. Essa mesma condição gera o direito dos Estados e municípios que também lhes sejam fronteiros - conforme o Dicionário Aurélio: "que está de fronte, situado em frente"; e o Houaiss: "adjacente, situado à frente de".

O Supremo Tribunal Federal (STF) já decidiu, no julgamento do Mandado de Segurança (MS) n.º 24.312/DF, em que foi relatora a culta e talentosa ministra Ellen Gracie, que, "embora os recursos naturais da plataforma continental e os recursos minerais sejam bens da União (Constituição federal, artigo 20, V e IX), a participação ou compensação aos Estados, Distrito Federal e Municípios no resultado da exploração do petróleo, xisto betuminoso e gás natural são receitas originárias destes últimos entes federativos (Constituição federal, artigo 20, parágrafo 1.º)".

O senador Francisco Dornelles (PP-RJ), incansável defensor do respeito ao artigo 20, parágrafo 1.º, da nossa Carta Constitucional, já advertiu que "qualquer federação que se pretenda permanente deve evitar que seus membros digladiem entre si para obter vantagens a todo custo sobre seus pares, sem se preocupar com as consequências para o conjunto da federação" (in Jornal do Commercio de 25/10/11).

O único argumento razoável para justificar a alteração do atual tratamento constitucional da matéria seria o de que, na época da promulgação da nossa atual Lei Maior, os constituintes não imaginaram que 20 anos depois seriam descobertas as áreas do pré-sal, a 7 mil metros de profundidade do Oceano Atlântico.

A modificação dessa situação, no entanto, não pode ser objeto de um simples projeto de lei, mas de uma emenda constitucional, que respeite os direitos adquiridos - constitucionalmente protegidos - de Estados e municípios, no momento da promulgação da Constituição de 88, e considere as possibilidades futuras.

O certo é que o mencionado projeto de lei, pela forma como está redigido, viola, flagrantemente, os direitos constitucionais dos chamados Estados produtores - como Rio de Janeiro, Espírito Santo e São Paulo, fronteiros a áreas do pré-sal e do pós-sal, Sergipe, Paraná, Ceará e Rio Grande do Norte, fronteiros a áreas do pós-sal, Bahia e Amazonas, com áreas produtivas no subsolo, afora os que possam ser beneficiados pela descoberta de novas áreas produtoras.

Nessas condições, é de esperar que a presidente da República vete, integralmente, o referido projeto de lei. E incumba a especialistas competentes e imparciais a elaboração de novo texto, mais conciso e que não agrida a Constituição nem desagregue a união entre os Estados da Federação.

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