sexta-feira, setembro 14, 2012

Primavera ameaçada - EDITORIAL FOLHA DE SP

FOLHA DE SP - 14/09


Morte de embaixador dos EUA na Líbia, em meio a onda de violência, faz temer pela incipiente democracia em alguns países islâmicos



O vídeo "Inocência dos Muçulmanos", que serve de pretexto para uma sucessão de ataques contra alvos americanos em países islâmicos, é de uma sordidez ímpar. Tacanho e intolerante, não representaria mais que uma tentativa canhestra de incitar preconceito contra islamitas -não fosse pelos efeitos mortais que desencadeou.

Ainda é obscura a autoria do filmete de 14 minutos, que desde julho pode ser baixado para visualização em computador. Há indícios, porém, de que teve apoio de militantes cristãos ultraconservadores da Califórnia e da Flórida.

Após ganhar legendas em árabe, difundiu-se pelo mundo. Na data simbólica de 11 de setembro, motivou ataques a representações dos EUA no Egito e na Líbia -neste último foram mortos o embaixador J. Christopher Stevens e mais três americanos, em ação que teria contado com membros da Al Qaeda.

Novos conflitos ocorreram ontem no Egito, no Iêmen e em outros países, com centenas de feridos.

Por odioso que seja o vídeo, sua repercussão e a violência que a acompanhou são desmesuradas. Em países ocidentais, onde o valor da liberdade de expressão se sobrepõe às compreensíveis sensibilidades religiosas, se enquadra na categoria das baixezas que a democracia se condena a tolerar.

Não é assim em nações muçulmanas. Em especial naquelas com pendor ou domínio teocrático, a sacralidade de normas e entidades corânicas precede a própria noção de direitos fundamentais.

Mesmo que se reconheça a justiça da repulsa de fiéis à profanação da figura de Maomé, não há como justificar com ela o assassínio de inocentes -como funcionários sacrificados só por serem americanos- nem como conciliar ideal algum de civilização com tamanho fundamentalismo religioso. Tal é o ponto de fuga em que tende a esvair-se o entendimento entre democracias ocidentais e as versões mais sectárias do islamismo.

Claro está que também se encontram exemplos de fanatismo nos EUA, mas não escaladas de ódio como as que ora se observam em algumas sociedades islâmicas.

Seria lamentável, portanto, se o presidente Barack Obama, em plena campanha pela reeleição, sequer cogitasse usar o ocorrido como desculpa para incursões punitivas, violando a soberania de nações para amealhar simpatia entre eleitores belicistas.

Preocupa, com efeito, que a violência antiamericana tenha eclodido em países pioneiros da Primavera Árabe, como Tunísia, Egito e Líbia. Se recrudescer, pode revelar-se sintoma de que o movimento por democracia cede terreno para facções islâmicas mais afeitas a ditaduras teocráticas como a do Irã.

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