sábado, setembro 08, 2012

O velho novo mundo - SÉRGIO AUGUSTO


O ESTADÃO - 08/09


Um edifício cinzento, de 34 andares, abriga o Centro de Incubação e Condicionamento. Acima da entrada principal, um escudo com os dizeres "Comunidade, Identidade, Estabilidade". Essa é a divisa do Estado Mundial, a utopia (ou distopia) imaginada por Aldous Huxley em seu romance mais conhecido: Brave New World (Admirável Mundo Novo). No tal centro, na zona central de Londres, chocadeiras eletrônicas geram bebês padronizados que, distribuídos em incubadeiras especiais, são alimentados por uma estranha "secreção pasteurizada" e, na idade oportuna, submetidos a um meticuloso trabalho de lavagem cerebral, graças ao qual se tornam as criaturas mais felizes e conformadas sobre a face da Terra.

Replicantes de um pesadelo cientificista, todos eles crescem condicionados a ter "ódio instintivo" a livros e flores, pois a cultura, a beleza e o amor à natureza podem abalar suas convicções induzidas, arrastá-los para a apostasia, sempre uma ameaça, por contágio, à estabilidade e à segurança da ordem vigente. Para sua diversão, existem esportes com bola, vagamente parecidos com os que conhecemos e praticamos, música sintética e filmes de incríveis efeitos sensoriais, chamados "feelies", precursores do 3-D e do Smell-o-Vision.

O Estado Mundial é a sociedade perfeita: uniformizada, sem atritos, todos sadios, trabalhando como formigas, de forma ordeira e passiva, plenamente satisfeitos com as castas sociais (Alfas, Betas, Gamas, Deltas, Ípsilons), às quais pertencem por obra de uma química genética conhecida como Processo Bokanovsky. Sexo à vontade, sem casamento nem reprodução, sem sentimentos, sem família, sem herdeiros. Os três pilares da revolução burguesa, Liberdade-Igualdade-Fraternidade, há muito perderam sentido na sociedade tecnológica influenciada e abençoada por Ford, o novo Deus dos homens. Ford, de Henry Ford, o inventor do automóvel e da produção em série.

Pelos meus cálculos, o romance começa e termina por volta do ano 2540 da Era Cristã ou, mais precisamente, no ano 632 da Era Ford, iniciada em 1908, quando a fábrica Ford lançou o primeiro Model T (no Brasil batizado de Ford de bigode) e criou a primeira linha de montagem. Há quem ponha o velho Henry no mesmo patamar de Marx e Freud. Huxley não o alçou gratuitamente à categoria de divindade máxima de um mundo dominado pela máquina, deixando Freud de fora até do elenco de nomes e sobrenomes famosos (Lenin, Benito, Hoover, Rothschild, Diesel, Bakunin) que desfilam pelo livro, no qual Marx, ao contrário, empresta seu sobrenome a um dos protagonistas.

Está fazendo 80 anos que Admirável Mundo Novo chegou pela primeira vez às livrarias. Traduzido aqui pela Editora Globo, seu prazo de validade profética parece tão inesgotável quanto o de 1984, de George Orwell. Difícil, se não impossível, dizer qual das duas distopias é a mais terrível, se a opressão vigiada de Orwell ou o bem-estar artificial de Huxley. Não há, no Estado Mundial, um Big Brother permanentemente à espreita nem repressão com o mesmo grau de violência física, mas uma sociedade cuja felicidade depende de um psicotrópico poderoso como o soma (o "Cristianismo sem lágrimas", na definição de uma autoridade local) pode prescindir de qualquer outra forma de brutalidade. Huxley inventou a escravidão satisfeita, o totalitarismo indolor.

Num mundo à parte, batizado Malpaís, vivem os antípodas da civilização cibernética, rotulados "selvagens" porque nascidos e criados como todos nós fomos e ainda somos, a despeito de já estarmos no ano 104 da Era Ford. Um deles é trazido para o "mundo novo" e domina os últimos capítulos, sem no entanto virar herói. Ao contrário dos "civilizados", salvo o grande administrador que esconde num cofre os tesouros da antiga cultura, para que ninguém neles possa pôr os olhos, o Selvagem sabe quem foi e leu Shakespeare, de resto citado em abundância ao longo da narrativa. "Brave new world" saiu de uma exclamação de Miranda, no quinto ato de Rei Lear.

Detalhe irônico: Miranda exalta o "admirável mundo novo" ao seu redor quando se descobre apaixonada. Porque fruto do que os Pavlovs do Estado Mundial qualificariam de "intoxicação hormonal", seu brado de felicidade lá seria considerado um anátema de primeira grandeza, que na certa lhe valeria um desterro para bem longe daquela "pululante mesmice indistinguível", para a Islândia ou algum outro sucedâneo da Sibéria stalinista. O que até seria uma bênção, já que no gulag huxleyniano só há hereges da comunidade de proveta, em grande parte artistas e intelectuais dotados de livre-arbítrio.

Embora tenha escrito Admirável Mundo Novo sob o impacto de uma viagem aos Estados Unidos, onde se assustou com o consumismo desvairado, o gregarismo e as vulgaridades dos americanos, Huxley resume em pouco menos de 300 páginas algumas das ideias e dos modismos em circulação, quando não em prática, na União Soviética e na Europa do seu tempo. A influência de H.G. Wells (A Máquina do Tempo), Zamyatin (Nós) e do filme Metrópolis, de Fritz Lang, era inevitável, como ineludível foi sua influência sobre Orwell e toda uma série de assustadoras fantasias que culmina, mas não se encerra, em Blade Runner, de Ridley Scott, que, aliás, só em julho deste ano cancelou de vez seu velho projeto de adaptar Brave New World ao cinema.

Em Brave New World Revisited, publicado em 1958, Huxley avaliou os acertos de suas predições sobre os efeitos subliminares da propaganda, da lavagem cerebral, da hipnopedia e outras técnicas de manipulação comportamental desenvolvidas nos 27 anos que separavam a escrita do romance de sua revisitação. Hoje, ficaria ainda mais satisfeito. Mas, como em 1958, só consigo mesmo.

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