segunda-feira, agosto 06, 2012

Leros, boleros - JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS


O GLOBO - 06/08

A sensação, por qualquer caminho que você vá, é de que alguém abriu os canos de gás e, em desespero amoroso, desistiu. Leia na minha camisa, leia num muro sujo numa esquina abandonada da Jardim Botânico: "O amor está foda".

Leros, boleros, eis as tantas notícias que me têm chegado quando abro os ouvidos, os olhos, o coração, e percebo. Dalva de Oliveira estava certa ao cantar que o amor é bagaceiro, o amor é bandoleiro, é o ridículo da vida.

Essas divas sabem tudo, elas comeram o pão que o diabo amassou, e é assim que também têm me passado os dias, assim que me passam os anos, e ninguém aparece para cantar o bolero contrário. Para dizer fique calmo, essa dor passa. Para garantir que tu te acostumaste a todas aquelas coisas e a mulher da tua vida um dia te voltará aos braços. Vestida de noiva ou só de véu ou grinalda, ela voltará. Aos prantos, com o perfume de gardênia que tinha a boca dela, ela aos prantos retornará como voltam sempre esses boleros cachorros que agora aparecem por todos os lados, eternos gritos de perfídia que não me deixam mentir. O amor está fogo na roupa.

Não tenho visto ninguém ateando fogo às vestes, ainda, mas ouvi "Contigo aprendi", o melhor CD de música brasileira da semana passada, com o MPB-4 apresentando em voz e violão novas versões para boleros clássicos. Eles também concordam. São só enganos, desenganos, gente fingindo, negando, enganando, até quando, até quando? Caetano Veloso mostra no disco sua versão para um clássico do gênero, e mais uma vez, aos 70 anos, põe o dedo nessa ferida que não para de sangrar, que não para de botar corações fora do peito. O amor não é uma criança esperança. Depois dos versos "Sabe Deus se tu me amas ou me enganas", Caetano expõe o que me ia n"alma faz tempo, mas só o bolero dá ao macho a coragem de chegar em público e abrir o jogo: "O homem não sabe nunca nada".

Experimente ir ao cinema, mergulhar a dor no colesterol de um saco de pipoca salgada, e lá estará ele, o desgraçado, o amor que bateu a porta na tua cara, o amor que disse passe bem e até nunca mais. O amor é vício do corno manso. É ele, suas lágrimas, seus chifres, quem está no filme "Vou rifar meu coração", o melhor documentário brasileiro da semana passada. Uma multidão de abandonados pela sorte amorosa. Alguns, se deixando chamar pelo brasileiríssimo nome próprio de Corno da Silva, botam a alma na mesa e escancaram a dor. Vacilaram. Traíram-se. Apaixonaram-se pelo homem errado, casaram com a mulher sequelada, e agora só lhes cabe chafurdar na lama torpe da humilhação pública. Eles revelam que as letras do Waldick Soriano, do Odair José, do Amado Batista, deuses da canção romântica nacional, falam da luz do abajur lilás que ilumina esses dramas, histórias comuns a todos nós, capachos onde o amor limpa as botas e depois, orgulhoso, todo pimpão, vai em frente.

Ninguém sabe de onde surgiu essa vocação nacional para o sofrimento, em que casa grande ensolarada, em que senzala da sociologia a dor se transformou em nobreza romântica, a ponto de precisar ser purgada pelas canções da mesma sina. Quem desfere tantos tiros no peito dos desiludidos do amor? O diretor Breno Silveira levou um pé na bunda aos 17 anos e, como a dor tamanha não passa, aos 48 anos ele conta a partir de sexta, nos cinemas, uma tragédia parecida com a sua. Breno aliviou a infelicidade com canções de Roberto Carlos - e resolveu exibir a fórmula. Uma das músicas do filme é a do cara que volta para casa, decidido a tentar tudo novamente, e é recebido no portão pelo cachorro que lhe sorri latindo. Quem não chorará? Chutamos, somos chutados. Quem não batererá no peito os tambores do erro e do arrependimento?

Na contramão desse infortúnio, mas jogando com as mesmas desditas, Arrigo Barnabé está lançando DVD com o repertório de Lupicínio Rodrigues. São as histórias de sempre, mas sem santinhas de pau oco. Aqui, as que abandonam são vagabundas sem sangue nas veias e sem coração, almas daninhas que praticam o verbo judiar sem se importar com o politicamente incorreto dele. Tripudiam, sacaneiam, baixam o nível. Ao contrário dos maravilhosos infelizes da canção brasileira, Lupicínio não põe o galho dentro. Sofreu a covardia e a ingratidão de todas, e exibe as armas da vingança. Sem essa de remorso. Gargalha quando os amigos dizem que encontraram uma das vadias chorando na mesa de um bar. O amor é fogo, é foda, é fuleiro, é fera ferida, inferno, todas essas palavras em efe, feias, que se puder juntar.

Ninguém presta quando o amor acaba, e ele acaba mal em todas essas músicas que vocês acabaram de ouvir nesta rádio-crônica. Sofre-se muito na agenda cultural desta semana, e o resultado é uma coleção de bons discos e filmes. Só que no caso de Lupicínio e Arrigo, eles são do sul do país. Numa noite fria, provaram o chimarrão amargo do pé na bunda, e guardaram rancor. Querem vingança. O título do DVD é "Caixa de ódio".

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