sexta-feira, agosto 03, 2012

Essência da causa - DORA KRAMER

O Estado de S.Paulo - 03/08


Se o mensalão é o maior escândalo da história da República, só a invenção de artefato de medição comparativa seria capaz de dizer.

O documento importante aqui não é o tamanho, mas a essência da causa: o mercadão em que governos e partidos fazem suas operações de compra e venda pela primeira vez será submetido aos ditames do Código Penal e da Constituição.

Trata-se de um marco a partir do qual tais negociatas perdem o status de prática comum, aceita e tida como inevitável, para se tornar objeto de escrutínio criminal.

Isso faz toda a diferença. Impõe barreira ao desenfreado cinismo dos defensores da tese de que política sempre se fez com mãos sujas e que assim deve continuar a ser feito.

Ainda que as provas não sejam suficientes para condenar os réus, não será possível demonstrar a inexistência dos fatos como pretendem os acusados. Ao fim do julgamento, o máximo que poderão obter é a absolvição, nunca a anulação da realidade.

Esta está posta na trajetória a ser rememorada diariamente nas próximas semanas: desde a primeira notícia, desmentida, em setembro de 2004, até o início da apreciação formal da ação penal.

Entre esses dois momentos houve a delação de um integrante do esquema, as investigações de uma comissão parlamentar de inquérito, a inspeção do Ministério Público, o oferecimento da denúncia, a aceitação pelo Supremo Tribunal Federal de que havia base para a abertura de um processo e, finalmente, o momento da decisão.

Nada disso pode ser ignorado, bem como tudo isso deve ser visto sob a perspectiva de saúde das engrenagens institucionais que, obviamente, se assim decidiram que se chegasse até aqui não foi por se associarem a uma conspiração ou aderirem a uma fantasia da oposição em conluio com a imprensa.

A materialidade dos acontecimentos é que os fez transitar da boataria de corredores no Congresso até o julgamento no Supremo.

Se não houvesse substância, não haveria 50 mil páginas de processo sobre as quais a Corte se debruça desde ontem no exame daquele que pode ou não ser o maior escândalo da história da República.

Tanto faz como tanto fez seu tamanho ou denominação. Se a narrativa recebe o apelido de mensalão ou a designação jurídica e ultimamente considerada politicamente correta de ação penal 470, não importa.

Interessa menos o nome que as coisas têm se, na essência, elas são como são. E nesse caso são ações de apropriação do patrimônio público por grupos políticos que usam a delegação popular como salvo-conduto para prevaricar na execução de projetos de continuidade no poder.

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