terça-feira, julho 17, 2012

Patrimonialistas e republicanos - SILVIO RIBAS


CORREIO BRAZILIENSE - 17/07

Em uma das últimas entrevistas exclusivas concedidas pelo senador Jefferson Péres (PDT-AM), morto em 2008, tive a honra de ouvir dele que a luta ideológica entre esquerda e direita havia desaparecido no Brasil a partir da chegada de Luís Inácio Lula da Silva à Presidência. Ele explicava que, muito mais do que a queda do Muro de Berlim (1989) e o fim da União Soviética (1991), foi o pragmatismo da luta pelo poder o responsável pela divisão clássica de correntes políticas. Os arranjos cada vez mais confusos de siglas e de personagens, que antes antagônicos e depois viravam aliados e vice-versa, estavam evidenciando dois novos blocos de pensamento.

Na visão daquele desencantado líder, os esquerdistas e os direitistas brasileiros estavam sendo rapidamente acomodados nos figurinos de republicanos e patrimonialistas (a maioria). Péres reconhecia que o termo republicano estava sendo desgastado pelas próprias autoridades, que se elogiavam por repartir o bolo orçamentário sem olhar a cor partidária de quem recebia os recursos. Para Péres, respeitar as instituições democráticas e a pluralidade de legendas é obrigação de quem recebe mandato do povo. A diferença é impedir desvios e empregar com justiça e zelo o dinheiro (do) público.

Os patrimonialistas, contudo, avançaram nos últimos anos, até mesmo brandindo boas intenções. Querem e conseguem repasses de verbas, empregos comissionados, indicações para estatais e ministérios, missões oficiais ao exterior, passaporte diplomático para o filho, carro oficial e outras boquinhas. A faxina empreendida pela presidente Dilma Rousseff no primeiro ano de sua gestão receberia aplausos do pequeno grande representante da bancada ética do Senado. Ele chamaria o gesto de republicano, mas logo depois a consideraria limitada demais.

“Sonho com um Brasil em que a coisa pública seja administrada com austeridade, em favor de todos, e não tratada como cosa nostra, em benefício de amigos, parentes, correligionários e apaniguados”, disse ele certa vez na tribuna, inspirado no discurso histórico Eu tenho um sonho — I have a dream —, do líder norte-americano Martin Luther King. Esse sonho de Péres ainda está longe de virar realidade, apesar dos avanços que ele não pode ver, como a mobilização pela Lei da Ficha Limpa, da cassação do senador Demóstenes Torres e das passeatas organizadas em redes sociais contra a corrupção.

Ele ficaria muito mais decepcionado e convicto de sua avaliação sobre a evaporação de quaisquer matizes programáticos se tivesse acompanhado a eleição recorde do deputado federal Tiririca (PR-SP) e, sobretudo, testemunhasse o surgimento há pouco mais de um ano do Partido Social Democrático (PSD), que “não é de esquerda, nem de direita ou centro”, na claríssima definição de seu presidente nacional, Gilberto Kassab, prefeito de São Paulo. Não por acaso, a “novidade” no cenário eleitoral negocia e celebra acordos simultâneos com o Planalto e os rivais deste.

Lógica reversa

Na política cada vez mais fulanizada e menos doutrinária do Brasil, sem partidos consistentes e votos inclinados ao personalismo sem conteúdo, os políticos acabam dando mais importância às questões pessoais que as locais. Da mesma forma, privilegiam mais os temais locais que os nacionais, sem importar se esses terão depois reflexo na sua base de eleitores.

O cidadão comum, por seu turno, parece comungar desta visão de mundo, colaborando para deixar ainda mais variada a salada ideológica. Os patrimonialistas adoram essa confusão para poder transitar para onde houver melhores chances de tirar proveito. O bom-senso perdeu há muito tempo para a Lei de Gérson, segundo a qual “tem de se levar vantagem em tudo, certo?”. Errado.

A esperança de uma mudança mais profunda, com desdobramentos institucionais e culturais, pode estar no horizonte de escassez do Estado brasileiro. Endividada na casa do trilhão de reais e sendo obrigado a cobrir crescentes rombos previdenciários e a sustentar uma máquina gigantesca e ineficiente, a República terá de limitar ou até tirar terreno dos patrimonialistas para não deixar na mão os 200 milhões de cidadãos.

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