sexta-feira, junho 22, 2012

Os perigos da "boa" inflação - MÁRCIO GARCIA


Valor Econômico - 22/06


Que temos longa história de tolerar a inflação, é fato notório. No início dos anos 1960, a inflação anual, que podia beirar 20%, era tida como elemento gerador de receita (senhoriagem) fundamental para o setor público financiar o desenvolvimento. A inflação acabou aproximando-se dos três dígitos. Na ditadura militar, inicialmente, a inflação caiu, mas implantou-se a indexação, então tida em alta conta entre economistas. Na segunda metade dos anos 60, Milton Friedman elogiava a indexação como a melhor alternativa à estabilidade de preços. Mais tarde, com aumentos de preços do petróleo e megadesvalorizações cambiais, não devidamente contrarrestados pela política monetária e fiscal, a indexação nos colocou no trilho da hiperinflação, da qual só viríamos a sair mais de uma década depois, com o Plano Real.

Os alemães, que viveram sua hiperinflação há nove décadas, são ainda muito avessos à inflação, presumivelmente por conta do longínquo episódio. Aqui, entretanto, tal ojeriza à inflação parece não ocorrer, malgrado a proximidade de nossa experiência hiperinflacionária. E tal fato torna-se ainda mais preocupante quando justificativas para conviver com "um pouquinho mais de inflação" começam a tomar corpo no governo.

Em sua próxima reunião, seria oportuno o CMN reduzir a meta para inflação de 4,5% para 4%

A justificativa começa desdobrando a inflação entre inflação de serviços e demais itens. Como mostra o gráfico, a inflação de serviços tem sido sistematicamente mais elevada do que a inflação total, desde que a taxa de câmbio voltou a apreciar, após a grande crise internacional do final de 2008, que chegou a levar o dólar a R$ 2,50.

Prossegue a justificativa, alegando-se que a maior inflação de serviços adviria dos aumentos salariais para os mais pobres, que trabalham majoritariamente no setor de serviços. Assim, a maior inflação de serviços seria um efeito colateral necessário à promoção da "inclusão social".

Finalmente, a justificativa termina afirmando-se que, quando maior igualdade de renda for atingida, a inflação de serviços tenderá a cair, deixando de ser um problema.

Essa é uma narrativa muito preocupante, por várias razões. Mesmo que a associação entre melhora da distribuição de renda e inflação de serviços seja verdadeira, algo ainda a ser demonstrado, há que se cotejar esse eventual benefício com os riscos, estes, sim, muito palpáveis, da elevação da inflação, a médio prazo.

Como mostra o gráfico, a inflação brasileira apresenta sinais de "esquizofrenia": a alta inflação de serviços tem sido parcialmente contrabalançada pela deflação dos bens duráveis. Os preços dos bens duráveis têm caído porque a queda no nível de atividade global tem mantido em xeque os preços dos itens comercializáveis internacionalmente ("trabables"). Já os serviços, que não podem ser importados, têm podido aumentar seus preços frente à continuada expansão de demanda, via consumo público e privado.

A continuação do atual status quo não está, de nenhuma maneira, garantida. A recente depreciação cambial é uma das ameaças. Mesmo com preços internacionais deprimidos, os itens "tradables" tenderão a aumentar de preços em reais, se a taxa de câmbio permanecer no atual patamar ou se depreciar ainda mais. A retomada da economia mundial, ainda que improvável a curto prazo, quando vier a ocorrer, deve trazer preços mais altos dos "tradables". Com a inflação de serviços por volta de 8% ao ano, será difícil seguir cumprindo a meta de inflação, sob demanda interna aquecida.

Tais ameaças não são imediatas. Mas, por isso mesmo, é oportuno que nos preocupemos com elas agora. A hora de consertar o telhado é quando não está chovendo. Narrativas que justifiquem complacência com a inflação, não importa quão bem intencionadas, devem ser repudiadas para que não se corra o risco de repetir custosos erros passados. Também para reafirmar o compromisso com o sistema de metas para inflação, seria oportuno o CMN aprovar a redução da meta para 2014, dos atuais 4,5% para 4%, nível mais próximo das metas para inflação praticadas internacionalmente.

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