sábado, maio 12, 2012

Além do campo visual - SILVIANO SANTIAGO


O ESTADÃO - 12/05/12


Em coluna anterior falei de leitura pela imersão do espectador em ambiente de imagem criado por computação gráfica em 3D. A experiência subjetiva se dá pelo uso de capacete de realidade virtual. Vali-me, então, do livro de Oliver Grau, Arte Virtual: Da Ilusão à Imersão. Destaque foi dado à pesquisa de artistas em alta tecnologia, exemplificada pelo trabalho Osmose, de Charlotte Davies, a ser visto na internet. A erudição de Grau recomenda um passo atrás na história da arte. Compreende-se melhor a ansiedade do espectador em usufruir ambientes de imersão, caso sejam eles examinados à época em que existiam de maneira independente dos benefícios oferecidos pela computação gráfica.

Em fins do século 18, o público urbano europeu ganha uma casa de espetáculos localizada no centro da metrópole. Nela é exposta representação pictural em 360º de algumas capitais do mundo ou de batalhas históricas. Apelidada inicialmente de La Nature à Coup d’Oeil (A Natureza Vista de Relance), a invenção da representação pictural em 360º se deve ao irlandês Robert Barker, que registra a patente em 1787. Quatro anos depois, já em Londres, Barker cria o neologismo Panorama. O vocábulo descreve tanto o edifício encimado por cúpula, quanto o conjunto circular da pintura realista, exibido ao público pagante. O preço da entrada é alto nos dias em que se inaugura o panorama e reduzido ao fim da temporada. Típico espetáculo de massa.

Por escada, o visitante tem acesso à plataforma circular de visualização, que é protegida por balaustrada. Ao centro da sala, observa a pintura ilusionista que o rodeia. Por exemplo, Londres, tal como vista em 360º do telhado dos Moinhos a vapor Mills. Ou a Batalha de Copenhague, vencida por lorde Nelson. Posicionada acima da cabeça dos espectadores, a iluminação leva-os a acreditar que a pintura é a fonte da luz, efeito que mais tarde será aperfeiçoado pelo cinema, que estaria ocupando as salas abandonadas de panorama.

O público leigo não imagina que são duas novidades civilizacionais concorrentes que possibilitam o panorama. Graças a elas é que a observação começa a substituir o entusiasmo como motor da pesquisa. Uma das novidades é estética. Traduz o gosto pelas técnicas de visualização inspiradas pela perspectiva e desenvolvidas a partir dos anos 1470 na comuna de Urbino, na Itália. A outra, pragmática. Decorre do fato de que os dados apenas cartográficos não são suficientes para o bom planejamento de futuras operações pelas tropas coloniais. O pincel do artesão que pinta o panorama é orientado pelas pinturas artísticas que têm o horizonte como limite da experiência visual, pelos meticulosos desenhos militares de terreno e pela representação realista do espetáculo grandioso da paisagem.

O vocábulo panorama continua a ser usado à época da fotografia, como atestam o Panorama da Baía de Guanabara (ca 1885) e o Panorama do Centro da Cidade (ca 1890), ambos do franco-brasileiro Marc Ferrez, hoje no Acervo do IMS. Ou a recente série fotográfica da artista Mariko Mori, intitulada Beginning of The End: Past, Present and Future (1995-2000). A japonesa clicou belíssimas vistas em 360º de 11 cidades representativas do passado, do presente e do futuro da humanidade. Desde 2009, o Departamento de Polícia de Nova York usa a câmara Panoscan para captar imagens em 360º de cenas de crime. Servem elas para imergir o perito policial no acontecimento (New York Times, 22/7/2009).

Relançada por Oliver Grau, a pesquisa sobre panoramas nos séculos 18 e 19 foi complementada em 2011 pelo livro The First Panoramas: Visions of British Imperialism, trabalho impecável de Denise Blake Oleksijczuk, publicado pela Editora da Universidade de Minnesota.

Ao deliciar-se com os panoramas pintados, o espectador recebe um aprendizado cosmopolita. Desde o século 18, sua experiência de mundo passa a ser dupla: a do dia a dia (aqui e agora) e a do saber proporcionado pela imersão na cena representada (lá e então). Dessa forma, cauciona-se a formação moderna de novas "identidades", que serão reativadas pela futura voga do cinema e da televisão. A duplicidade espacial e temporal leva Denise a se interessar por quem vê o panorama e pelo modo como é visto. A pintura estimula o espectador a produzir novos significados, com que se identifica. Ele ignora que já estão previstos pelo discurso da arte renascentista e da guerra colonial.

Por o panorama representar terras e povos além das fronteiras europeias, o público incorpora ao léxico mental noções concretas sobre etnia (então compreendida pelo conceito de "raça"), sobre gênero (construção de um Ocidente masculino e de um Oriente feminino) e sobre hierarquias sociais. Por representar o uso de força militar pelo império britânico durante as Guerras Napoleônicas, o panorama de Barker mostra a nação como candidata ao poder mundial. A ambição colonizadora do Reino Unido se trai pelas vitórias contra as tropas de Napoleão. Ao visitar o panorama que reproduz a batalha de que sai vitorioso, lorde Nelson diz a Barker que está em dívida para com ele. O panorama "mantém a fama de sua vitória na Batalha do Nilo por um ano a mais do que ela teria durado na estima do público".

Por o corpo do espectador responder de modo sensual e visceral ao estímulo do panorama, sua imaginação confunde ver, ler e saber. É ainda atual o depoimento de um deles, que descreve a desorientação por que passa: "Eu oscilava entre realidade e irrealidade, entre natureza e não natureza, entre verdade e aparência. Pensamentos e espírito eram guiados em obediência ao balanceio de um lado para o outro, como se estivesse caminhando em círculos ou bamboleando num barco. Assim é que explico a tonteira e o mal-estar que o espectador despreparado sente face ao panorama".

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