sexta-feira, abril 13, 2012

Will - FERNANDA TORRES

FOLHA DE SP - 13/04/12


A obra do dramaturgo está recheada de ambições de reinado, dinastias de glórias e danações funestas


Harold Bloom afirma que Shakespeare não foi feito para ser dito. Só o leitor, na mudez da consciência, seria capaz de apreender a dimensão da poesia do inglês na sua totalidade.

Se Bloom, que já ouviu o bardo na língua nativa e da boca dos mais nobres intérpretes, acha que ninguém dá conta, quem sou eu para afirmar o contrário?

A categórica opinião do americano veio me trazer alívio. É voz corrente, no teatro brasileiro, que um dos grandes empecilhos a nos afastar do maior autor teatral do planeta, fora todos os outros, é a nossa incapacidade de incorporar a contento reis e rainhas, duques e princesas, lordes e aristocratas. Os poucos imperadores que tivemos, tratamos aos pontapés. Não carregamos conosco o sentido da realeza.
A obra do dramaturgo está recheada de títulos e ambições de reinado, dinastias de glórias e danações funestas. Um retrato da corte da mais independente potência do mundo ocidental.

Traições, conspirações, assassinatos e execuções faziam parte do cotidiano de Londres e decidiam o mapa geopolítico da Europa. Como fazer um país colonial, como o Brasil, parir comediantes capazes de dimensionar tal poderio?

"Como Shakespeare se Tornou Shakespeare", de Stephen Greenblatt, editado pela Companhia das Letras, está curando o meu temor ao gênio.

Quem me passou o livro foi minha progenitora. Ela o encarnou raras vezes, apenas pequenos trechos, além de ensaiar um "A Megera Domada" que nunca chegou a estrear.

Com uma vasta experiência em destrinchar autores, Fernanda costuma dizer que o problema com Shakespeare é que, mal você dá conta de uma imagem, ele já propõe outra igualmente profunda, e mais outra ainda mais poética, e mais outra, e mais outra, e mais outra... O ator vai à lona por nocaute.
Greenblatt adverte que a biografia de um homem que viveu há 400 anos atrás é um apanhado de suposições, mas tenta ancorá-las tanto nas provas conhecidas da existência do autor como também, e principalmente, na sua obra.

Filho de um artesão de luvas finas e negociante clandestino de lã, o jovem Will testemunha a ascensão e queda de seu pai, queda essa que o afasta em definitivo da faculdade. Ainda moço, é obrigado a casar, após ter engravidado uma mulher mais velha, a quem deixa no interior com os três filhos. Talvez fugido, parte de Stratford com uma trupe de artistas, o fim da cadeia alimentar da sociedade de então.
Na metrópole, se torna íntimo do submundo dos palcos. Autores como Marlowe e Greene viviam entre a farra e a bandidagem. São vândalos formados em Cambridge e Oxford. Se insultam em latim, travam duelos em grego, fazem espionagem e distribuem sopapos em prostíbulos.

O biógrafo descreve o suposto Will como um ser distante da violenta boêmia e arrisca o perfil de um forasteiro tão vira-lata quanto qualquer colono dos trópicos: ator plebeu do interior, que vence sua falta de formação, nobreza e dinheiro amparado por uma genialidade capaz de absorver e recriar o mundo à sua volta.

De Greene, forja Falstaff e lança desafios a Marlowe, indo além dele. Do pavor de bruxas do recém-coroado Jaime I, Shakespeare evoca o trio infernal de "Macbeth"; em
"Hamlet", promove em cena a missa fúnebre, proibida pelos protestantes aos católicos, em louvor à morte de seu pai e seu filho.

O bardo cobriu sua obra de pistas sobre suas reflexões íntimas a respeito do casamento, da xenofobia, do homossexualismo, da religião e da morte; mas o fez com discrição. O teor das palavras levou muitos à forca na Inglaterra da virada do século 17.

Greenblatt traçou um precioso guia para reler Shakespeare do ponto de vista pessoal. Essa quase biografia é obrigatória para qualquer ator emergente intimidado pela vasto império de palavras do inglês. Ela o tira do Olimpo e o aproxima dos vis mortais.

Jamais me seduziram as teorias de que Shakespeare era outro, ou outros, que não ele mesmo. Ao tentar descobrir o homem escondido nas tragédias, comédias e sonetos, Greenblatt o torna tão imenso quanto os personagens que inventou. A impressionante reunião de todos eles.

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