segunda-feira, março 19, 2012

Mas parece uma vaca - CARLOS ALBERTO SARDENBERG


O Estado de S. Paulo - 19/03/12


Diz-se que um psicólogo americano, tentando provar sua tese de que a gente vê imagens separadas e compõe o" conceito"na cabeça, resolveu entrevistar um vaqueiro, ao lado de seus alunos. 

Foi mais ou menos assim: - O que o senhor está vendo ali na frente?, pergunta o psicólogo.

- Uma vaca, diz o vaqueiro.

- Mas olhando bem, prestando atenção na imagem, o que parece? - Uma vaca, e ela está de lado para nós.

- Mas o senhor não está vendo, antes, um amplo plano azul e outro verde? - Sim, o céu e o pasto.

- Bom, e o objeto ali no meio...

- A vaca...

- Na verdade, o senhor não estaria vendo planos e cores brancas e negras? - É...

- Planos inclinados e tons diferentes, certo? - Olha, doutor, vista deste lado, parece uma vaca.

Podem-se ver muitas análises e planos isolados na última Ata do Comitê de Política Monetária(Copom) do Banco Central (BC), em que se anunciou que a taxa básica de juros vai parar nos 9% ao ano.

Mas parece que o Copom enxergou mesmo foi uma bela vaca: a caderneta de poupança.

O bicho já estava no pasto. No governo e fora dele-especialmente nos meios políticos - crescia a discussão sobre como mudara regra de correção da poupança.Mudança tida como obrigatória.

A poupança, pagando 0,5% ao mês mais TR,deu uma remuneração de 7,4% em 2011.O poupador não recolhe Imposto de Renda (IR),não paga taxa de administração, pode sacar a qualquer momento e tem garantia do governo.

Assim, se a taxa básica de juros fixada pelo BC- que remunera títulos do governo, base dos fundos de investimentos, e é piso do custo do dinheiro - cair para a casa dos 8%, a poupança surge como aplicação imbatível. Em um fundo, em títulos de renda fixa, o investidor paga IR (de 15% a 22,5%) mais taxa de administração.

E qual o problema de a poupança tornar-se preferencial? Começa que o Tesouro,o governo, terá dificuldades para financiar seus gastos e a rolagem da dívida.

Por que o investidor compraria quotas de um fundo ou papéis no Tesouro Direto, numa operação mais complicada e menos acessível aos pequenos, se tem a simplicidade da poupança,pagando praticamente a mesma coisa? Além disso, obviamente, os grandes aplicadores,que têm facilidade para movimentar seu dinheiro, correriam para a poupança.( Na época da inflação alta e crônica, havia de terminados momentos em que a poupança rendia bem acima dos índices de preços.

Os próprios banqueiros, direta ou indiretamente, corriam a depositar seu caixa na velha caderneta.) Por outro lado, a poupança financia a construção civil.Com os juros do BC lá embaixo,aumentariam os recursos disponíveis para a casa própria, mas em proporção certamente superior à capacidade do setor. Não haveria famílias para tomar todo esse financiamento nem construtoras para atender à demanda.Assim,sobrariam recursos num lado e faltariam em outro, com um desequilíbrio grave do sistema financeiro.

É conclusão unânime. Para que os juros caiam no Brasil, é preciso mudar o sistema da poupança, com um objetivo explícito: reduzir a remuneração, pagar menos.

Do contrário,a regra da poupança impõe um piso para a taxa básica de juros, ali nas cercanias dos 8%.

Exatamente por isso, quando a taxa caiu a 8,75% em 2009, o governo Lula preparou e divulgou uma proposta para mudar a poupança.

O debate esquentava, o governo já estava meio arrependido e, aí,com a volta da inflação,os juros subiram de novo e o problema desapareceu.

Mas voltou.Como a presidente Dilma,o ministro Mantega e o presidente do BC, Alexandre Tombini, diziam abertamente que estava em curso um processo de redução estrutural da taxa de juros e,como o Copom começou a derrubar a taxa antes e mais depressa que o mercado esperava,a discussão sobre a poupança entrou no cenário.

O governo não oficializou nada, mas todo mundo sabia que os estudos estavam em andamento. Já se pensava até em campanhas de esclarecimento.

Mas a coisa rolou também na política.

Poupança é sagrada, é o dinheiro do povo. Fazer uma maldade aí em pleno ano eleitoral? De seu lado, a oposição, de maneira tão oportunista quanto irresponsável, já esfregava as mãos: o governo confiscando o dinheiro da poupança - e, por falar nisso, Collor não está mesmo na base de Dilma? Logo, faz todo sentido a reação do governo: não se fala mais nisso pelo menos neste ano. E a queda dos juros? A taxa do BC para nos 9%até o final deste ano.

A Ata do Copom não diz isso, nem o governo.A Ata traz um longo arrazoado técnico para explicar a decisão.

Mas vamos falar francamente: estatísticas bem torturadas confessam muita coisa; cenários sobre o futuro, então... Não que seja uma prática comum e recomendável, mas não é difícil tomar uma decisão e depois buscar os argumentos para apoiá-la.

O BC tem apresentado frequentes surpresas, pequenas e grandes.

Entre elas, foram duas mudanças súbitas de curso: a primeira, no ano passado,no sentido da ousadia, da heterodoxia, quando o Copom deu uma guinada para iniciar forte redução de juros; e a segunda, agora,numa direção que se diria conservadora,quando anuncia a interrupção do processo de queda, num ponto mais alto do que sugeria ainda há poucos dias.

Os analistas, os que apoiavam e os que criticavam o BC, entenderam que o Copom da era Dilma/ Tombini era diferente, preocupava- se com crescimento, além da inflação, e marchava para testar juros mais baixos. De repente, parou.

Pode-se dizer: mas é por pouco tempo, em 2013 se retoma o processo.

Não é bem assim. Se estava certo o raciocínio do BC antes da última mudança, o momento atual oferecia uma janela de oportunidade para acelerar a derrubada dos juros. Ano que vem volta a inflação e a situação se complica.

Não é normal um BC surpreender o mercado tantas vezes seguidas.

Nem o mercado nem o BC gostam disso. Desorganiza planejamentos de empresas e pessoas.

Por isso, os analistas se esforçam para entrar na cabeça do BC e enxergar os mesmos horizontes.

Mas está difícil.

Olhando o horizonte, o BC apontou vários cenários - planos inclinados e cores.Em nenhum deles aparece a restrição da poupança.

Mas pode olhar bem - é o que parece... a vaca está lá.

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