segunda-feira, fevereiro 06, 2012

A teia de Charlotte - LÚCIA GUIMARÃES


O Estado de S.Paulo - 06/02/12


"Uma vida. É só o que temos."

A Teia de Charlotte,

de E.B. White

Às 11h30 da noite, ouvi o bater rítmico da bengala no teto do meu quarto escuro. Alguém lá em cima estaria se comunicando em Código Morse?

À meia-noite, meu quase sono foi interrompido por uma gritaria que vinha da escada dos fundos. Estava muito cansada para tentar decifrar os gritos e o despertador não ia negociar o prazo de 5h30 obrigatório para entrar ao vivo na rádio.

À 1 da manhã foi a vez do interfone. Furiosa, coloquei um travesseiro na cabeça e pensei, deve ser engano. Não era. Do outro lado, ouvi a voz trêmula do zelador polonês, que balbuciou em inglês tatibitate: "Música alta no seu apartamento. Ela não consegue dormir." O silêncio reinava supremo em todo o meu andar.

"Ela" dispensava o nome. É Charlotte, oitentona, ex-madame que, em seus tempos de juventude e beleza, comandava um elenco de prostitutas, ex-residente de uma penitenciária, onde cumpriu pena por estelionato. E inquilina do edifício do bairro de classe média alta, graças a uma lei aplicável a quem se mudou para um apartamento antes de 1971, que lhe garante um contrato vitalício por uma fração (hoje calculo 1/6) do aluguel que pago.

Se Charlotte desfilar nua pelo lobby fazendo a saudação nazista, não há nada que se possa fazer. Se a sua jurássica máquina de levar roupa, instalada irregularmente num prédio com encanamento de 1920, inundar minha casa, como aconteceu duas vezes (gravei tudo em vídeo), não há nada que eu possa fazer.

Desci à portaria de pijama escondido pelo casaco longo, tomada por uma cólera que só os pais de bebês que não dormem à noite são capazes de compreender. Fiz a asneira de perguntar à Charlotte: "Que música é esta? Você ficou maluca?" É claro que Charlotte está se divorciando da realidade há anos. E minha reação foi a deixa para a rotina habitual: gritos, palavrões e ameaças.

No dia seguinte ao incidente, encontrei uma vizinha que é gentil e caminha devagar porque seu cachorro pastor tem quase 18 anos. Você teve sorte, ela comentou, depois de ouvir minha história. Há muito tempo, ela deixou cair um cheque no chão, a Charlotte pegou e pediu pagamento para devolver o cheque. "Quando me recusei a pagar", lembrou a vizinha, "ela pulou em cima de mim e começou a apertar o meu pescoço, no meio da portaria." E o pior, disse a vizinha, "é que eu estava atrasada para um compromisso de trabalho".

Ser quase estrangulada na portaria é desagradável. Já chegar atrasada ao trabalho...

Mas, como me lembrou o porteiro da tarde, pior é o veterano da Guerra do Vietnã que mora no prédio, outro beneficiário do contrato vitalício. Como Charlotte, ele não parece ter família, nem conta com qualquer sistema de apoio. Ele mantém seu porte de arma, embora, de vez em quando, interrompa a medicação antipsicótica e convoque norte-vietnamitas imaginários para duelos na calçada. O veterano agora foi a um canil e adotou um Pitbull que, como ele, havia sido maltratado.

Charlotte está doente e fraca demais para pular no meu pescoço. Mas, armada com sua bengala, continua xingando e gritando com a energia dos tempos em que operava o bordel. Ela está convencida: a música que ouve na sua cabeça de madrugada sai do meu apartamento.

Não há nada que eu possa fazer.

Não há nada que o sistema de saúde queira fazer.

Ah, o dono do edifício me sugeriu uma solução: discar 911 e a polícia aparece em menos de um minuto. Charlotte cai de novo na teia do sistema criminal, e, com sua saúde frágil e idade avançada, é fácil prever que um cobiçado apartamento volte mais rápido ao obsceno mercado imobiliário nova-iorquino.

Acabo de abrir a conta do meu seguro-saúde e a mensalidade subiu de novo, 40% em um ano e meio, mais de dez vezes a inflação americana. O seguro nem dá direito a visitas a consultório médico.

Pensei em discar 911. A saúde, neste país, é mesmo um caso de polícia.

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