sábado, dezembro 17, 2011

Noiva - FERNANDA TORRES


 REVISTA VEJA -RIO

Passei as últimas semanas de novembro paramentada de noiva por causa do seriado de televisão Tapas e Beijos.
O vestido era “o” vestido dos vestidos: um modelo princesa com corselete cinturado de renda brocada do qual nascia uma gigantesca saia formada por dezenas de camadas de tule, repousada sobre farta anágua de entretela engomada.
Foi o mais perto que cheguei de Cinderela.
Após cravar o último grampo para fixar a tiara no crânio a contento, abandonei o espelho mágico e segui para o estúdio junto com minha companheira, Andréa Beltrão, a outra noiva igualmente esplendorosa.
Amassamos as laterais esvoaçantes para passar pela porta ampla sem maiores dificuldades, mas arrastar a cauda por entre os fios, pregos e sarrafos do chão se mostrou uma operação arriscada. Quando finalmente alcançamos o cenário, os gestos mais corriqueiros, como ir para as marcas e esperar o próximo take, só eram possíveis depois de um desengonçado balé.
Caso desejássemos mudar de lugar, era preciso girar a parte de baixo no sentido almejado, levantar a cascata de tecido com as unhas postiças e sair arrastando os objetos de cena enquanto chutávamos a entretela em linha reta. Para sentar, era necessário girar novamente a roda de pano, virar de costas para a cadeira e agachar lentamente, fazendo um contrapeso entre a cabeça e o traseiro.
Com o tempo, um calor diabólico começou a brotar das pernas e subir pela barriga, até atingir o pulmão. Apertado pelas barbatanas do espartilho e superaquecido pela fornalha dos baixios, o órgão vital saiu de circuito. Respirar virou um problema. Para coroar, a enxaqueca chegou rasgando. Quando me vi livre do andor, a ideia de me enfiar novamente naquela armadura de gaze já não me parecia tão atraente.
E olha que estávamos em um ambiente refrigerado.
No dia da externa do casório, um sol inclemente tomou de assalto Curicica. Vladimir Brichta e Fábio Assunção, empacotados de príncipes, trajavam fraque, colete, gravata apertada e colarinho alto. Juntos, lembravam chaminés de locomotiva prontas para soltar vapor pelas ventas.
Como é duro o dia da noiva. E do noivo.
Um amigo e a mulher já moravam juntos havia alguns anos, quando resolveram se casar. Escolheram a igreja, os padrinhos e o padre; marcaram a data, distribuíram convites e se prepararam para oficializar, perante Deus e a sociedade, a sua eterna união. Na hora em que o último convidado foi embora, depois da missa solene, da recepção, do bolo, do beija-mão, da comoção e da farra, os dois se viram sozinhos na sala de casa, a mesma que os havia abrigado nos últimos anos, e foram acometidos de um acesso incontrolável de choro.
Na peça É…, a que assisti diversas vezes na infância, Millôr Fernandes cita uma frase de Bernard Shaw que jamais vou esquecer: “Quando dois jovens estão apaixonados, em um estado de exaltação febril e patológica, a sociedade põe diante deles um padre e um juiz e exige que jurem que permanecerão o resto de sua vida nesse estado anormal, deprimente e exaustivo”.
Não sou tão ferina quanto Shaw, mas a profissão de atriz me roubou muito da magia das bodas.
Perdi a conta do número de vezes que o serviço me fez caminhar para o altar. O resultado é que não consigo pensar no grande momento sem levar em consideração o esforço hercúleo de levantar o circo.
Minhas reticências são todas de ordem prática.
Uma cerimônia desse porte é uma diária de gravação apertada com duas locações: a capela e o salão de festas, além das cenas pendentes da lua de mel. Tem direção, elenco, figuração, figurino, maquiagem, cenografia, sonoplastia, iluminação, contrarregra, transporte, alimentação… até equipe de filmagem tem. É um ritual teatral parecidíssimo com o meu ganha-pão.
Apesar de eu achar bonito ver um homem e uma mulher, ou duas mulheres, ou dois homens, assumirem seus laços diante dos entes queridos, John Lennon e Yoko Ono ainda encarnam meu ideal de romantismo. Os dois se casaram na surdina, em Gibraltar, e só depois contaram para o mundo.
Eu sonho assim. E de preferência com a minissaia e o chapelão da Yoko.

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