sábado, dezembro 10, 2011

Muito além das fronteiras nacionais - DANIEL PIZA


O ESTADÃO - 10/12/11

Em 'Notas para a Definição de Cultura', um olhar mais próximo ao da antropologia, com ênfase no papel da religião

Permanece ainda um fato a estudar que os dois maiores poetas e intelectuais modernistas dos EUA, T.S. Eliot e Ezra Pound, de incalculável contribuição para a renovação da arte poética, da crítica ocidental e do idioma inglês, por meio de uma inventividade e profundidade até hoje não superadas, tenham sido conservadores políticos e elitistas culturais. Pound, que na verdade simpatizava com o fascismo e chegou a ser preso por defender Mussolini em programas de rádio, sonhava com o que aconteceria com a América caso os clássicos literários tivessem ampla circulação - como se ler Dante pudesse fazer rimar riqueza e sabedoria. E Eliot, que se dizia classicista, anglicano e monarquista, afirma neste Notas para a Definição de Cultura que uma civilização não pode "produzir simultaneamente grande poesia popular em um nível cultural e o Paraíso Perdido em outro", referindo-se à obra-prima de John Milton.

Delírios e esnobismos à parte, ambos, que viveram muitos anos na Europa (Eliot em Londres, Pound em Paris e Veneza), fizeram o máximo para tirar os EUA da ignorância pujante de cem anos atrás. E não só como poetas (em textos carregados de citações poliglotas), mas também como editores (em revistas e editoras) e como ensaístas, críticos culturais no sentido mais amplo. Para variar, o mercado editorial brasileiro tem dado pouca atenção ao último gênero, essencial para a modernidade. Pound, por influência do grupo concretista, foi mais bem tratado, com títulos como ABC da Literatura. De Eliot, graças a Ivan Junqueira, houve uma seleta de ensaios, hoje esgotada, com textos essenciais como Tradição e Talento Individual e A Função da Crítica e aqueles em que resgata John Dryden e Andrew Marvell, e agora temos a elogiável reedição de Notas para a Definição de Cultura. Mas a produção ensaística dos dois é muito maior.

Eliot foge da definição de cultura de um Matthew Arnold, por exemplo, que a via como a aquisição do que melhor se pensou e se criou ao longo dos séculos, e se aproxima da definição antropológica: cultura é o "modo de vida" de uma sociedade, o conjunto de valores e signos que diferentes classes e regiões produzem com atritos saudáveis e faz parte do cotidiano comum. Para Eliot, a cultura também transcende fronteiras nacionais - mas tudo isso só acontece graças à religião, com a qual ele identifica o conceito de cultura. De nada valem, diz ele, a sensibilidade artística e a educação científica se não houver o contraponto humanista da religião, em especial dos "2 mil anos de cristianismo". Da mesma forma, uma elite só é digna do nome - a parcela que representa o melhor da sociedade, como uma aristocracia do espírito - se os diversos segmentos dialogam entre si, não fechados em especialidades. Em outras palavras, Eliot, em 1948, via no esquecimento do legado europeu o fim da civilização como ele a entendia. Se vivo hoje, acharia que no poema The Waste Land foi otimista demais.

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