sábado, setembro 17, 2011

WALTER CENEVIVA - A juíza


A juíza
WALTER CENEVIVA
FOLHA DE SP - 17/09/11

Quando a polícia excede seus limites funcionais, deixa de lado deveres que a lei lhe impõe em sua função


A presunção constitucional de inocência impede qualquer estudioso do direito de considerar culpado alguém que não foi submetido a julgamento.
Para maior clareza e apenas para efeito de discussão, admitamos a hipótese de que um tenente e dois cabos da Polícia Militar do Rio de Janeiro sejam autores do homicídio que vitimou a juíza Patrícia Lourival Acioli, conhecida pela severidade ao aplicar a lei nas sentenças criminais que proferia.
Comecemos pela questão institucional. Da parte dos indiciados, a Polícia Militar. Um oficial de carreira da polícia carioca e dois cabos -com muita experiência no exercício da profissão pela qual optaram. Examinada a questão sob a ótica de sua motivação (elemento fundamental na análise das condutas envolvidas), nota-se que o motivo do crime foi o desgosto, ou o desconforto dos policiais, com a atuação da magistrada.
Se a hipótese for verdadeira, comportará o envolvimento de instituições que -cada qual de seu lado- têm de repelir as condutas criminosas. Mostrará o fim da linha da dignidade profissional dos acusados. Pior ainda: exibirá a pouca inteligência do gesto, a ignorância de que condutas dessa espécie sempre levam a opinião pública, ou seja, a sociedade civil, a se unir na afirmação de que tais ações são inaceitáveis. Não podem ser toleradas, qualquer que tenha sido a razão pessoal dos supostos autores.
Mostrará que a corporação deve estar atenta, se quiser preservar o prestígio e a respeitabilidade que constituem fundamentos de sua história, na justificativa precisa de sua existência. Já não se tratará do conflito entre pessoas. Será disputa entre instituições cuja missão conjunta só é válida se percorrer linhas paralelas, a benefício da cidadania, a destinatária final.
O caminho a percorrer integra o destino das mesmas instituições. Tanto o juiz quanto o policial são servidores públicos; iguais, portanto, nesse ângulo. A diferença está em que a polícia é função do Estado, conforme definida na Constituição Federal. É encarregada precipuamente da segurança pública, nas cinco hipóteses do art. 144 da Carta. Duas delas são as polícias civis e as militares.
O juiz atua em um poder do Estado, o Judiciário. A diferença se explica pela palavra "poder". O magistrado tem legitimidade para dizer o direito, que impõe pela sentença aos seus jurisdicionados, aos seres humanos, às pessoas jurídicas e até ao próprio Estado. A legitimação é o seu poder. Em certas circunstâncias, o juiz pode, desde a comarca menos significativa à mais importante, impor o cumprimento de sua decisão mesmo ao Estado.
Por quê? Porque sua missão integra o Poder. É membro do Poder Judiciário. Essa é a essência do que a juíza morta tinha em suas mãos. Se errasse, prestaria contas ao tribunal ao qual se vinculava. Se o tribunal, por seu lado, errasse, as cortes superiores lhe corrigiriam o engano.
A circunstância de nem sempre ser assim não modifica o raciocínio: polícia é função. Quando excede os limites funcionais, deixa de lado deveres que a lei lhe impõe no cumprimento da função.
A morte da juíza fere o Poder, ofende o Estado. Preocupa toda a cidadania, que lhe dá substância. Aumenta a preocupação com a criminalidade.

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