sábado, setembro 03, 2011

GILBERTO MENDES - Um relembrar de volta para o futuro



Um relembrar de volta para o futuro
GILBERTO MENDES
O Estado de S.Paulo - 03/09/11

Já conversamos sobre o significado dos anos 50 do século passado na vida musical paulistana, ainda até hoje não devidamente pesquisado. Tentávamos febrilmente, naquele momento, com o restante do mundo, recuperar o tempo perdido durante a guerra. E o que nos atraía muito? Os extremos. O passado medieval - renascentista e o futuro, uma neue Musik que começava na Europa.

A Orquestra de Câmara de São Paulo, dirigida por Olivier Toni, fazia temporada anual no Teatro Municipal da cidade, aproveitando o material de orquestra do repertório barroco que herdara do Angelicum de Milano. Paralelamente, Toni dava força total a uma nova geração de compositores que procurava estar em dia com a nova música mundial: éramos eu, Rogério Duprat e Willy Corrêa de Oliveira. Já disse e repito, não seríamos quem somos, como músicos, sem a sábia orientação do Toni.

Com sua já consagrada Orquestra de Câmara, num concerto promovido em 1961 pela 5.ª Bienal de São Paulo no Teatro Cultura Artística, televisionado ao vivo pela antiga TV Excelsior, com cartaz em forma de poema concreto feito por Décio Pignatari, o maestro Toni apresentou-nos juntos pela primeira vez, prenunciando já um futuro Manifesto. E a repetição desse concerto em Santos, no ano seguinte, deu origem ao Festival Música Nova. Um Festival que termina agora melancolicamente nessa cidade, à beira de seus 50 anos.

Felizmente, um outro evento santista comemora festivamente seu cinquentenário: o Madrigal Ars Viva, também uma extensão de outra atividade paulistana dos anos 1950, o Movimento Ars Nova. Havia um gostinho na época pelos nomes latinos. Fundado em 1961 por um grupo de musicistas da cidade interessados na música antiga e de hoje, com base no Conservatório Lavignac, de nossa amiga Adriana, fomos buscar para regê-lo o inesquecível maestro Klaus-Dieter Wolff, que passava seus fins de semana aqui em Santos. Foi o primeiro coral brasileiro - e talvez o único, até hoje - a se especializar em música vocal experimental, inspirada sobretudo na poesia concreta. Histórico, nesse sentido, fez a estreia mundial e gravou em LP meu Beba Coca-Cola e Um Movimento Vivo, de Willy Corrêa de Oliveira, as duas obras sobre textos de Décio Pignatari. Posteriormente, gravou novo LP com outras obras minhas experimentais, como NasceMorre, texto de Haroldo de Campos, Asthmatour, texto de meu filho Antonio José, Vai e Vem, texto de José Lino Grünewald. Mais recentemente gravou CD duplo de compositores santistas, reunindo Almeida Prado, Gil Nuno Vaz e Roberto Martins, seu regente atual, depois da morte de Klaus. Cantei no Madrigal durante uns 12 anos, experiência que educou e refinou singularmente minha sensibilidade e criatividade musical.

Essa estranha intimidade, via música coral, de nossa música experimental com a música da Renascença e Idade Média, levou-nos, pelo menos a mim, a uma curiosa integração de linguagens musicais tão distantes. Uma peça como meu Beba Coca-Cola, no fundo, é um motet francês, à maneira de Les Cris de Paris, de Jannequin. Um moderno pregão de feira renascentista. Também lembra Pour Quoy me Bat mes Maris, de Guillaume de Machaut. Peças que cantávamos no Madrigal Ars Viva, sob a douta regência de Klaus-Dieter Wolff. No fim de meu Com Som sem Som, texto de Augusto de Campos, depois de todo um desenvolvimento estrutural, abstrato, da massa coral, passo tranquilamente pela medieval cadência Landini e finalizo com uma ondulação meio jazzística das vozes.

A questão se agrava agora com a infinita possibilidade atual de pesquisa via internet. Vivemos assim, ontem e hoje, afogados numa miscelânea de tipos de música os mais variados e contraditórios, que vem recuperando tudo que foi abominado pelo modernismo: a beleza, a emoção, a comunicação. Um outro neoclassicismo, pós-moderno, em busca de tempos mais remotos e variados. Confesso que me é bastante instigante esse relembrar voltado para a frente, como dizia Kierkegaard. Às vezes, na verdade, eu me considero um compositor mais dos tempos de Machaut, Dufay, Adam de la Halle. Anseio por paisagens vazias, pouca gente e muitas árvores. Compor somente para minha comunidade. Naquela solidão medieval, pegar meu cavalo, andar quilômetros até o castelo de outro compositor amigo, mostrar-lhe minha última música composta. Discutiríamos depois, entre um copo e outro de vinho tinto, mais pão e salame, sobre uma ars nova, uma nuove musiche já se definindo. Isso me bastaria.

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