sábado, setembro 10, 2011

CACÁ DIEGUES - O estado da corrupção


O estado da corrupção
CACÁ DIEGUES
O GLOBO - 10/09/11

É preciso combater a corrupção com fervor, persistência e rigor. Ela existe e, em nosso país, talvez seja uma das mais perversas do mundo. Segundo levantamentos feitos pelo CGU e pelo TCU, publicados pela "Folha de S.Paulo", o montante de recursos públicos desviados, entre 2002 e 2008, foi de R$40 bilhões. Dava para resolver muitos de nossos problemas crônicos.
A corrupção é hoje uma causa nacional que independe de conflitos sociais ou políticos. Mas não entremos em pânico. A imoralidade pública pode grassar, mas a exposição cotidiana dos crimes cometidos é uma demonstração de que existe um projeto da sociedade para combatê-la e eliminá-la. Se ainda convivemos com escândalos quase diários, é porque temos conhecimento dos malfeitos e não estamos de acordo com eles.
Sabemos os nomes dos criminosos, mesmo que muitas vezes não consigamos pô-los na cadeia. Seus crimes só se tornam escândalos públicos que se multiplicam diariamente porque não são mais hábitos secretos de uma elite que tinha poder para, além de cometê-los, escondê-los de nós. Pelo menos agora eles perderam o direito à ocultação de cadáver.
Talvez a sociedade brasileira esteja querendo dizer que quer, de uma vez por todas, separar o estado dos interesses privados, como já fez no passado com a religião.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha se tornou o primeiro documento político de nossa história. Nela, além da narração de viagem e da descrição das riquezas encontradas na terra descoberta, Caminha não perde a oportunidade de pedir ao rei emprego para um parente seu em Lisboa. Era o primeiro tráfico de influência de nossa história.
Basta ler as pregações de Antonio Vieira e as sátiras de Gregório de Matos, cheias de referências à corrupção colonial, para compreender que a coisa só foi piorando. Mas culpar exclusivamente Portugal e nossa origem portuguesa pelos nossos maus costumes, como temos o hábito de fazer, é um pouco exagerado. Daqui a onze anos, estaremos completando dois séculos de independência nacional, já teria dado tempo de nos corrigirmos da má influência.
Logo de saída, o Império, durante quase todo o século 19, fez do estado brasileiro um patrimônio de privilegiados, pouco havendo distinção entre a riqueza do país e a riqueza dos donos da terra. Coisa que não sofre mudança com a República Velha e quase nenhuma a partir da Revolução de 1930 e da subsequente ditadura Vargas.
Quando Getulio Vargas, agora presidente eleito, dá um tiro no peito, em 1954, o faz sufocado pelas ondas do "mar de lama", como era chamada a corrupção que, segundo a oposição, grassava em seu governo. Talvez o suicídio de Vargas tenha evitado um regime de força como aquele que cairia sobre nossas cabeças dez anos depois. Mas certamente absolvia com ele os supostos larápios da República pois, tirando o preto semianalfabeto que lhe servia de guarda-costas, ninguém foi condenado pelo "mar de lama".
Mesmo o hoje festejado presidente Juscelino Kubitschek, consagrado como o modernizador responsável pelo desenvolvimento do país com democracia, estaria, segundo seus críticos na época, fazendo da criação de Brasília uma fonte de receita indevida, para ele e seus amigos. E finalmente, em 1964, o pretexto que os militares usam para a tomada do poder pela violência é exatamante o da luta contra a subversão (o fantasma do comunismo na Guerra Fria) e a corrupção (a devassa dos cofres públicos pelos populistas do presidente João Goulart).
Durante aqueles 21 anos de ditadura militar, em que o totalitarismo não permitia a divulgação de notícia que não fosse de seu interesse, conheci muito esquerdista preso, torturado e morto. Posso estar enganado, mas nunca soube de nenhum corrupto que tivesse sido posto na cadeia.
Apesar de privatarias e de mensalões, vivemos, desde o governo Itamar Franco, uma época de ouro em nossa história, certamente os melhores 20 anos dela. Em termos de consolidação da democracia, desenvolvimento econômico, estabilidade financeira, melhor distribuição de renda etc. Mesmo numa área em que estamos ainda tão atrasados, como a da educação, 90% de nossa população em idade escolar se encontra hoje nas escolas, apesar da carência na qualidade do ensino. Nos "anos dourados" da década de 1960, 35% dessa população estavam fora da escola, por falta de vagas.
Isso não quer dizer que vivemos no país de meus sonhos, ainda falta muito para isso. E sonhos não foram feitos para serem realizados; eles existem para que saibamos que sempre pode ser melhor. Mas só posso considerar alvissareiro que a presidente da República deseje fazer uma faxina ou seja lá o que for (parece que ela destituiu essa palavra de qualquer autoridade oficial). No mínimo, pela primeira vez, não se trata mais de um argumento moralista ou oportunista da oposição do momento, mas uma iniciativa da própria chefe de estado e de governo, representante eleita de toda a população disposta a eliminar a corrupção da vida desse país.
Essa eliminação não deve visar somente ao modesto comissionado, o intermediário que rouba dois tostões. Mas atingir também os corruptores, os grandes favorecidos pelas exceções que o estado cria para facilitar a vida de seus parceiros.Não se trata apenas de prender o ladrão, mas de inaugurar uma nova prática republicana - o estado não é patrimônio de uns poucos, seja em que formato for. Pelo contrário, ele existe para realizar os projetos da maioria e proteger deles a minoria.

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