sexta-feira, junho 03, 2011

IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO - A mancha de zabaione no caxemira




A mancha de zabaione no caxemira
IGNÁCIO DE LOYOLA BRANDÃO
O Estado de S.Paulo - 03/06/11

Tinha ainda na cabeça as cachoeiras de São Francisco Xavier, o Festival da Mantiqueira cada vez mais consolidado, o murmúrio do riacho por trás da Pousada Muriqui, a embalar nosso sono, enquanto o bolo de fubá do meio da tarde embalava o paladar, o escondidinho de carne-seca ou os peixes do Allegro, sempre lotado, os encontros no café da manhã de figuras como Luiz Felipe Pondé, Lobão, Luis Ruffato, Márcio Souza, Regina Zilberman e Xico Sá. Pensava no dia anterior, achando que o festival é curto e as mesas divertidas, e no supermercado, mergulhado no cotidiano, empurrava o carrinho quando dei de frente com a mulher. Devia ter uns 30 anos e tinha a cara amarrada.

Nos olhamos e ela empurrou o carrinho em minha direção, segura de que eu era um homem cortês. E sou, decidi dar caminho. Na estreiteza dos corredores, a única solução era andar para trás. Ir de fasto, como se diz no interior. Ela nem me olhou, continuou empurrando seu carrinho em minha direção, quase junto da minha barriga. Podia ter andado mais devagar. Continuei de fasto, nem podia olhar para trás.

De repente, tropecei num caixote, perdi o equilíbrio, caí sentado dentro de uma embalagem vazia de frutas. Fiquei de tal modo encaixado que ficou difícil levantar. A mulher passou ao largo e deu um sorriso irônico, me gozando.

Agora, o que faço quando me vir de novo na mesma situação? Empurro meu carro para a frente como se não viesse ninguém na minha direção? Obstruo o caminho? Ou continuo sendo uma pessoa educada, aquela que dá caminho, que cede passagem e que é visto como bobo? Dilemas. E não há mais manuais de etiquetas para nos orientar.

Não era mesmo o meu dia. Saí, caminhei e ao passar por uma doceira, célebre pelas bombas de zabaione, entrei atraído pelo doce cheiro. As bombas, cobertas com glacê rosa, são perfeitas, um creme maravilhoso na textura. Pedi uma, apanhei com cuidado, e dei uma mordida. Ela se rompeu pelo lado de baixo, o creme saiu num jato, caiu sobre a malha de caxemira que me foi dada pela minha mulher naquela manhã. Fiquei na mão com a casca da bomba. Desapontado, comi a casquinha e lambi um restinho do creme que tem uma tênue dose de álcool.

Procurei os guardanapos, estavam na mesinha do centro e havia três mulheres conversando, rodeavam a mesa, bloqueando a passagem.

- Com licença, posso apanhar um guardanapo?

Um delas olhou e me ignorou. Repeti o pedido.

- Por favor, posso apanhar um guardanapo?

Outra das três mulheres me contemplou com cara de desdém (sei lá por que peruas têm esse olhar altivo e desequilibrado), e ao dar com a mancha de zabaione no meu belo caxemira novinho, disse:

- O senhor está todo sujo! Olha a porcaria que fez ao assoar o nariz. Não se envergonha? Este é um lugar fino.

- Não assoei o nariz, este é o creme da bomba de zabaione que explodiu.

- Se comesse direito, não explodia. Coloca-se a bomba inteira na boca. Não se diz bomba, chama-se éclair.

- Ah! Éclair... Como fecho éclair?

Ela me deu as costas. O creme de zabaione estava escorrendo para a minha calça. Olhei em torno, não havia uma pia, não havia uma torneira, minha mão também estava melada. Saí, entraria num bar, me limparia. Voltei correndo, tinha esquecido o livro no balcão. O novo livro da Eliane Brum, o romance Uma/Duas. Corri ao balcão, o livro estava lá, as três mulheres ainda rodeando a mesa onde ficavam os guardanapos inacessíveis, fregueses olhavam com nojo a mancha de zabaione.

Então, passei o dedo no que restava do creme e coloquei na boca, saboreando. Duas mulheres viraram a cara com desprezo. Um mauricinho (ainda existe esse termo, ou essa tribo?) gritou alto e sonoro: PQP. Sorrio, apanhei o livro. Ninguém ligou para um livro no balcão, todos na tarde em que tímidos raios de sol furam nuvens cinzas e geladas tomavam cafés, capuccinos, comiam palmiers, como se estivessem em Paris, os rostos empinados. Como tem gente de rosto empinado na cidade.

Fui atravessar a rua, abriu o sinal para mim, avancei dois passos na faixa de pedestres, um BMW veio para cima, recuei, xinguei, o motorista me fez um gesto, aquele que significa vá tomar. Ainda ouvi: "Pensa que pela idade pode atravessar a faixa quando quiser? Vai morrer rápido, abra o olho!" Tentei uma segunda vez, outro me impediu, recuei. Uma terceira tentativa, e o carro não vacilou, ia me atropelar, brecou em cima, o sujeito colocou a cara para fora, fui xingado. Li no jornal que estão tentando educar os motoristas e os pedestres. Aconselham o pedestre a fazer um sinal na hora de atravessar.

Ergui a mão e fiz o sinal. Um táxi parou, informei que não chamei táxi; ele, áspero, gritou: "Então, por que ergueu a mão para mim?" Não ergui para você, ergui avisando que quero atravessar a faixa, explico. Ele enraiveceu, porque se enraivece facilmente em São Paulo: "Nunca em toda a minha vida, e faz 40 anos que dirijo táxi, vi uma pessoa erguer a mão avisando que quer atravessar a faixa. Isso é para o ônibus, no ponto. De onde o senhor é? Um caipira. Vai morrer logo. Fique esperto. E ainda por cima sujo, melecado, o senhor é um porco!" Foi embora, o sinal fechou para mim.

Decidi ir a pé até minha casa, são 16 quadras, um vento gelado corta a Rebouças. Não era meu dia. Talvez amanhã seja. Ou depois, ou domingo. Quem sabe um dia eu possa sair de casa, atravessar a rua, comer uma bomba, conseguir um guardanapo. Talvez um dia as pessoas sejam gentis, mas não sei se estarei vivo.

Um comentário:

  1. Anônimo11:57 AM

    Pior é que as pessoas por essas bandas são assim mesmo...

    Isso ocorreu mesmo?

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