domingo, dezembro 19, 2010

RENATA LO PRETE

Anos lula se dividem em antes e depois do mensalão
RENATA LO PRETE
FOLHA DE SÃO PAULO - 19/12/10

Foram dois mandatos, mas o marco divisório dos oito anos da era Lula é outro: antes e depois do mensalão.

Revelado em junho de 2005, o escândalo derrubou o principal ministro do governo, dizimou a cúpula do PT e inaugurou uma temporada turbulenta de CPIs que, um ano mais tarde, viria a ceifar o outro polo de poder na Esplanada.

Reeleito e escaldado, o presidente reconfigurou sua base de sustentação no Congresso Nacional, incorporando oficialmente o PMDB, e impôs a seu partido não apenas a candidatura de Dilma Rousseff como todas as concessões necessárias para elegê-la.

O termo mensalão entrou para o vocabulário político brasileiro na primeira entrevista dada à Folha pelo então deputado Roberto Jefferson. Presidente do PTB, ele se vira exposto, semanas antes, num caso de corrupção miúda e explícita nos Correios.

Convencido de que o Planalto o escolhera como bode expiatório de uma batalha por espaço na estatal, Jefferson, que havia pouco tempo recebera Lula para jantar, foi ao ataque, acusando o PT de operar, sob as ordens de José Dirceu na Casa Civil, um esquema de pagamentos a parlamentares aliados. "É mais barato pagar exército mercenário do que dividir poder."

A segunda entrevista introduziu no noticiário o nome de Marcos Valério Fernandes de Souza, o pagador do mensalão. Apresentado como "publicitário", ele na verdade atuava como captador, intermediário e distribuidor de dinheiro, maximizando, em parceria como tesoureiro petista, Delúbio Soares, papel que desempenhara no governo do tucano Eduardo Azeredo em Minas.

As entrevistas deram início a um período de baixas sequenciais. "Sai daí rápido, Zé", disse Jefferson em depoimento ao Conselho de Ética da Câmara. E José Dirceu saiu, não sem antes afirmar: "Nada fiz, à frente do PT ou da Casa Civil, de que Lula não estivesse informado".

OS DEGOLADOS

Do PT foram degolados, além de Delúbio, o presidente, José Genoino, e o secretário-geral, Sílvio Pereira. Todos em pouco tempo e obedecendo ao mesmo roteiro de negação-evidência-queda.

Na terceira e última entrevista, Jefferson apontou o diretor de Operações de Furnas, Dimas Toledo, como arrecadador de recursos para políticos de diversos partidos. Esse caiu no mesmo dia.

A crise atingiu seu momento mais agudo em 11 de agosto, quando o marqueteiro Duda Mendonça admitiu à CPI dos Correios ter recebido de Valério, num paraíso fiscal, R$ 15,5milhões relativos à campanha de 2002.

O presidente -que, segundo Dirceu, hoje estaria disposto posto a ajudá-lo a desmontar "a farsa do mensalão"- recorreu a um pronunciamento em cadeia nacional: "Eu me sinto traído. Traído por práticas inaceitáveis das quais nunca tive conhecimento. Estou indignado pelas revelações que aparecem a cada dia e chocam o país".

Indagado em várias ocasiões, Lula jamais esclareceu por quem teria sido traído.

A aprovação ao governo mergulhou para 31% no Datafolha publicado um dia depois do depoimento de Duda e até 28% em outubro (hoje, são 83% os satisfeitos).

DEIXA SANGRAR

Foi também nessa altura que a oposição arquivou a ideia de um pedido de impeachment, apostando em "deixar Lula sangrar" até a eleição do ano seguinte.

Do lado do governo, já estava em execução a estratégia concebida por Márcio Thomaz Bastos (fato negado pelo ex-ministro da Justiça): reduzir o dano a crime eleitoral. Tratava-se de martelar a tecla de que não teria havido corrupção, mas apenas caixa dois -"recursos não-contabilizados", no eufemismo cunhado por Delúbio- para financiar campanhas. Algo que "todo mundo faz".

Jefferson foi cassado em setembro. Dirceu, em dezembro. Entre as duas votações e ao longo de 2006, 12 deputados que receberam dinheiro vivo do esquema, um deles o ex-presidente da Casa João Paulo Cunha (PT-SP), foram absolvidos por seus pares. Um perdeu o mandato (Pedro Corrêa, PP-PE). Quatro renunciaram para escapar.

No final de 2005, eram visíveis os primeiros sinais de que o ano eleitoral seria diferente do sonho da oposição.

Em 1º de janeiro, Lula concedeu ao "Fantástico", da Rede Globo, entrevista na qual buscou circunscrever a crise ao assunto caixa dois e projetar a recuperação de sua popularidade na esteira do crescimento econômico. "Meu papel é cuidar deste país, dizer à população que a economia vai crescer e que temos a oportunidade única de sair da condição de emergente para desenvolvido."

Entre janeiro e fevereiro, pesquisas começaram a captar a inversão da curva.

Em abril, o então procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, apresentou ao STF denúncia contra 40 pessoas envolvidas na "sofisticada organização criminosa", Dirceu à frente do "núcleo principal da quadrilha". Hoje, 38 respondem por crimes como peculato, corrupção ativa, corrupção passiva, formação de quadrilha e evasão de divisas.

A notícia não interrompeu a rota ascendente de Lula, tampouco afetada pela saída, no final de março, do ministro da Fazenda, Antonio Palocci, no episódio da violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa.

Terminou em agosto passado a etapa de depoimentos do processo do mensalão, relatado no STF pelo ministro Joaquim Barbosa. A expectativa é que o julgamento ocorra até o final de 2011.

Com Dilma eleita, o presidente voltou a falar sobre o mensalão, retomando o discurso de que tudo não teria passado de "tentativa de golpe". Como isso o aproxima da causa de Dirceu e dos demais petistas pendurados no Supremo, há quem enxergue no movimento o embrião do projeto Lula 2014.

Seja como for, não faltam vozes a desautorizar essa narrativa, a começar pelo futuro ministro da Justiça. Em 2008, na condição de ex-integrante da CPI dos Correios, o deputado petista José Eduardo Cardozo declarou: "Vou ser claro: teve pagamento ilegal de recursos para aliados? Teve. É ilegal? É. É indiscutível? É. Não podemos esconder esse fato da sociedade".

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