domingo, dezembro 12, 2010

MERVAL PEREIRA

Lula, o pai 
Merval Pereira
O GLOBO - 12/12/10

A maneira cada vez mais desinibida com que o presidente Lula interfere na formação do governo Dilma e as demonstrações de que pretende permanecer na ribalta política até o último segundo de seu último dia na presidência da República são sintomas, para o psicanalista Joel Birman, de que Lula, fora do poder de direito, vai buscar reencontrar um lugar para o exercício da política, já que ele, na opinião de Birman, "é um animal político no melhor sentido, fazer política faz parte do seu ser".

O problema que ele vai ter que enfrentar, lembra Birman, "é como realocar esse desejo, essa vocação, numa outra atividade, seja no nível nacional, seja no nível internacional".

O desejo de Lula parece ser "um projeto internacional que o mantenha dentro de uma visibilidade que ele busca, ele quer que o que ele faça repercuta midiaticamente", comenta.

Já o analista Fábio Lacombe questiona "o que existe em termos simbólicos, verdadeiros, nesses níveis de popularidade".

Embora não acredite que venha a acontecer, Lacombe adverte que "a culminância disso pode ser algo parecido com Chavez, que vai aproximando a convivência política da convivência do que Freud descreveu como o pai primordial, que manda em tudo, só os desejos dele devem se realizar".

Para Lacombe, Lula "não tem superego, tem uma coisa meio infantil, imatura, que faz com que conviva muito bem com uma dimensão imaginária. Ele não tem compromisso com a palavra, o importante é o jogo que ele pode fazer com as palavras, o jogo de imagens".

O psicanalista Chaim Samuel Katz também vai pelo mesmo caminho, lembrando que esse fenômeno já aconteceu em vários países, "a ideia de procurar um pai artificial".

Lula, analisa Chaim Katz, se portou como esse pai, e o reconhecimento popular "lhe dá o direito de dizer certas coisas".

Chaim Samuel Katz lembra Jacques Lacan: "O pai se quer afirmativo da autoridade suprema e única, desde as grandes religiões monoteístas. Portanto, quem se afirma "o pai" se quer universalizador abstrato dos possíveis".

Mas, para ele, "isso tem um pouco de comédia. Hoje, por exemplo, é impossível você pensar que tudo vem de um foco único, as coisas vêm de vários lados, várias manifestações, há várias nações dentro da Nação".

Mas ressalta que Lula "sabe fazer isso politicamente". Embora possa ser criticável, diz Chaim Katz, é preciso reconhecer "o mérito de ficar à vontade nesse lugar".

Outro psicanalista, Joel Birman, lembra que a figura do pai forte "atinge as pessoas comuns e propicia um vínculo afetivo, enquanto estratégia de poder".

Segundo ele, "a imagem toca no inconsciente coletivo. Faz parte do capital político de Lula".

Chaim também vê nesse mecanismo sintomas de manobras de poder: "Nessa época que denominamos de pós-modernidade, a maioria procura um centro que distinga e unifique; que, em nome-do-pai, expresse a verdade unificante do simbólico; e, especialmente, que garanta melhor a estabilidade e o equilíbrio".

Nessa análise, o pai seria "a garantia, o apoio único e efetivo". Portanto, diz Chaim, "afirmar o pai é simultaneamente um mecanismo psíquico e de poder. Ocupar o lugar paterno é garantir a todos que a verdade se fará".

Ele inclui nessa leitura, inclusive, a megalomania que muitas vezes transparece nos improvisos de Lula: "Em nome-do-pai tudo é (possível)".

Para Joel Birman, provavelmente Lula alimenta o desejo de voltar nas próximas eleições. "Saindo com essa baita popularidade, ele vai alimentar essa aura narcísica para poder voltar".

A autoestima exagerada, um fenômeno psíquico que provoca o sentimento de onipotência, segundo o psicanalista Joel Birman faz o seu possuidor acreditar estar acima das regras que o constrangem ou, na linguagem psicanalítica, ser o "eu ideal", que tem as respostas para tudo.

Por isso, a adaptação de Lula ao novo cenário político dependerá do sucesso que venha a ter na substituição da prática política. "Se ele tiver uma satisfação similar à que tem no exercício da presidência, ele vai ficar numa boa, sem precisar de interferência grosseiras. Interferência indireta continuará tendo, ele é uma autoridade inconteste e a Dilma volta e meia vai fazer apelos a ele".

O problema é saber se ele tem a compreensão de que ser uma "reserva política" é uma gratificação pessoal. "A própria prática vai mostrar", comenta Birman, para quem "ele tem essa experiência de que, num determinado momento, precisa acumular capital político para poder dar um salto".

Birman acha que Lula buscará recursos para se adaptar "na memória política" que - além de três derrotas antes de assumir a presidência da República - teve dificuldades no primeiro mandato, quando não tinha esse respaldo público, teve que atravessar a crise do mensalão, "e conseguiu dar a volta por cima".

Para a possibilidade de que, fora do poder, Lula venha a ter dificuldades psicológicas, Joel Birman diz que ao mesmo tempo que ficar fora do palco pode provocar nostalgia, "sair no auge também é importante, vai gerar saudades".

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