terça-feira, novembro 02, 2010

ARNALDO JABOR

O Rio de Janeiro é uma personagem
ARNALDO JABOR
O ESTADO DE SÃO PAULO - 02/11/10


Domingo, fui votar. Enquanto os votos caíam nas urnas, escolhendo uma grave mutação na vida nacional, meu filme estreava nos cinemas do país.

Desculpem a autorreferência, mas foi um domingo de muita emoção - "the end", fim de jogo, página virada no meu folhetim, ponto final do ônibus político.

Notei também que os cartazes de propaganda já eram retirados e isso me animou porque vi que "o vasto e incessante universo" (apud Borges in "Aleph") continuava sua marcha e entendi que, mesmo debaixo da avalanche política que nos soterrou de papéis, cartazes, falas falsas, mentiras e fracassos, há coisas que veremos intactas no futuro, e que o Rio continuará sendo uma personagem especial, tanto no meu filme como na vida social.

A cidade do Rio é uma pessoa poética e com desejos próprios. Há cidades que se movem sem rumo, mas o Rio resiste com suas esperanças e ilusões.

Não quero listar saudades, mas lembro do tempo em que as geladeiras eram brancas e os telefones eram pretos, como definiu Rubem Braga; lembro-me do bonde entrando na galeria Cruzeiro, sob a chuva, em um remoto Carnaval batido por ventos de lança-perfumes. Mas, não me interessa o tempo - apenas o "espaço" do Rio, as coisas que vejo desde criança como carioca do Meyer, da Urca e de Ipanema: cores, cheiros, ventos da terra e do mar, sal e peixes, súbitas luzes, súbitas brumas, súbitas "brahmas". Há no Rio coisas ínfimas que só o carioca vê: a púrpura que colore por instantes a Lagoa antes do crepúsculo nos dias em que a água é um espelho sem uma onda, sem um peixe saltando, quartetos de cigarras abrindo o verão, o esquilo atravessando a estrada das Canoas, a cotia do campo de Santana farejando perigo, a chuva quente que faz subir vapor nas calçadas, vejo as flores dos flamboyants caindo como gotas de sangue, vejo a garça magra e branca como um manequim desfilando no Jardim de Alá, sinto o calor, a energia pesada dos imensos granitos de 1 bilhão de anos, atrás de minha casa, onde os dinossauros se aqueciam, contemplo os urubus dormindo na perna do vento do Corcovado e um teco-teco vermelho passando entre eles, a cara do imperador assírio na Pedra da Gávea.

Essas coisas nem a política nem a truculência nem a estupidez vão apagar.

Apesar do tráfico e da violência, há nos morros a sabedoria calma de velhos sambistas, há nas ruas os poéticos caixotinhos dos apontadores de jogo do bicho, vendendo apostas nas esquinas em calmas conversas com aposentados, há as frutas, os legumes, as gargalhadas dos feirantes nas manhãs, há a malandragem, o tom debochado do carioca sabido, o arrastado sotaque em que ecoa a desconfiança nos poderes da capital que já fomos, ritmos e gestos nascidos nos balcões de secretarias desde os tempos do rei, o sotaque curvo como a paisagem arredondada, oscilando em negaças e volteios, a fala marcada por sambas, metáforas vivas condensando morte e amor, cachaça, empada, navalha, bilhares e futebol.

Entre a fórmica, os sujos grafites e os edifícios boçais, dá para ver ainda pedaços dos anos 40, restos de uma delicadeza perdida, as anedotas que se renovavam a cada semana, com papagaios e portugueses, piadas que giravam entre gagos, fanhos e gatos caindo do telhado. Há, sim, uma beleza em nossas fragilidades, no "samba, na prontidão (falta de grana) e outras bossas que são coisas nossas...", há a poética dos camelôs, objetinhos insignificantes nos tabuleiros, há também, apesar da decadência, uma satisfação cotidiana nos subúrbios, uma alegria desesperançada, uma aceitação das impossibilidades, diferente dos lamentos utópicos de inocentes do Leblon.

Há, sim, o jeito de andar das cariocas (olha o jeitinho dela andar), hoje com barrigas de fora e calças apertadas, sim, uma sexualidade forte não de celebridades de plantão, mas de gostosíssimas comerciárias e bancárias ao fim do expediente no centro, há o prazer de amar Ipanema e Leblon de novo, principalmente depois que o prefeito derrubou o muro da vergonha do César Maia no poético bar 20, onde o bonde fazia a curva desde o início dos tempos; há a tragédia da miséria em toda parte, sim, mas, entre os raios da tristeza, há os inúmeros grupos de choro e samba, tocando anônimos nos botequins e, sob sovacos de morro, há uma alegria soterrada que está reflorindo para além da excessiva euforia das escolas de samba, uma alegria mais discreta e verdadeira, há a alma de Nelson Rodrigues entre botequins e negões, há em minha cabeça a lembrança das últimas conversas com meu avô que me disse, já gagá, com os olhos úmidos: "É chato morrer, meu neto, porque eu nunca mais vou ver a avenida Rio Branco!..." Era na avenida que ele me levava para tomar "frapé" de côco na Casa Simpatia.

Não temos futuro?

Mas temos as calmas tardes do subúrbio passado, a precariedade de nossa vida antiga, de um mundo com menos gente louca e má. "Ah! Você por acaso quer a volta do atraso, da miséria terrível de antes?" - dirão alguns. Não, claro que não.

Mas acho que o Rio preserva algo muito precioso neste país, alguma coisa delicada que sumiu em outros lugares; há uma preguiça sábia, diferente da paranoia paulista, há uma moleza para além do ócio ou do desemprego, a malemolência das conversas, há o ritmo da "porrinha", um ritmo sem capitalismo, há restos de trilhos de bonde entrevistos nas falhas do asfalto, há a cidade desenhada sobre um corpo de mulher, tudo redondo, doce, há as montanhas da Barra que são mulher, há a linha infinita da restinga de Marambaia à Joatinga, linha frágil que divide o mar ao meio, e, finalmente, há a poética da sujeira, da zorra total, do baixo mundo, há a putaria poética em Copacabana entre veados, aloprados, "lunfas", "potrucas", michês, miquimbas e cafifas, todos num desabrigo corajoso e batalhador.

Não importa se vem aí, talvez, um "neojanguismo" tardio e ridículo.

Mas, o Rio é uma personagem que resistirá.

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