sábado, outubro 23, 2010

MAURO CHAVES

O valor da confiança
Mauro Chaves 
O ESTADO DE SÃO PAULO - 23/10/10


Quem garante que o policial que prendeu um cidadão, dizendo que este guiava na contramão, com notórios sinais de embriaguez, estivesse dizendo a verdade? Não poderia ele ter abordado qualquer um - que não tivesse cometido infração alguma - apenas com a finalidade de lhe extorquir dinheiro? Quem garante que um parlamentar que apresentou um projeto de lei com notórios benefícios para a coletividade não estivesse disfarçando o desvio de recursos públicos para algum privilegiado grupo - pois sempre não houve jeito de se praticarem falcatruas por meio de textos legais tecnicamente primorosos? E quem garante que um administrador público, fechado em seu gabinete em reuniões com empresários, líderes sindicais ou representantes de entidades aparentemente respeitáveis, não esteja respaldando, com conversas genéricas, as bandalheiras específicas praticadas no gabinete ao lado, por pessoas que lhe são subordinadas - e de sua máxima confiança?

Em qualquer organização, pública ou privada, todos os controles são possíveis. Mas isso tem como limite um mínimo razoável de confiança, já que é impraticável controlarem-se controladores - ou fiscalizarem-se fiscais - ad infinitum. Então, é necessário que haja um mínimo de confiança no agente policial que flagrou um bêbado dirigindo criminosamente - mesmo que este tenha exercido o seu direito de não se incriminar, recusando-se a soprar o bafômetro; é necessário que haja um mínimo de confiança no detentor de mandato parlamentar - e não a convicção de que ele só esteja lá para roubar; é necessário que haja o mínimo de confiança na capacidade de escalões da administração deixarem de escolher bandidos ou bandidas - e as respectivas famílias - para seus principais auxiliares.

Em artigo anterior, sobre a principal qualidade que deveria ter quem chefiará o Estado e o governo do Brasil a partir do dia 1.º de janeiro próximo, referi-me à recuperação do mérito, pelo fato de o mérito ter sido um dos valores mais destroçados na sociedade brasileira nos últimos anos - substituído que tem sido pelo compadrio, pelo companheirismo partidário, pelo nepotismo e pelo espírito de corpo desenvolvido por grupos com expertise maior no campo do desvio de dinheiro público (para uso político-eleitoral ou simples enriquecimento pessoal, mesmo). Mas, tanto quanto o valor do mérito, há um outro valor - o da confiança - que tem sido inteiramente despedaçado em território nacional.

O cidadão que paga impostos e cumpre a sua obrigação de prestar esclarecimentos à entidade oficial incumbida de arrecadá-los, pela primeira vez - na História deste país -, passou a desconfiar (com carradas de razão) do uso indevido de seus dados sigilosos. O jovem que se esforça para entrar numa faculdade, com o justo objetivo de ter uma boa profissão e subir na vida, passou a desconfiar (com carradas de razão) dos exames oficiais do ensino médio, por saber que seus dados pessoais ficaram expostos à divulgação geral e ao uso criminoso de quaisquer quadrilhas.

Desenvolveu-se no País, nos últimos anos, um potencial avassalador de desconfianças, resultante do acumulo de cenas e episódios não explicados: montanhas de dinheiro vivo (nas mesas de escritórios ou escondido em cuecas, bolsas e meias), mostrado na televisão, cuja origem nunca se esclareceu; investigações que permanecem sempre inconclusivas - e estrategicamente prorrogadas - sobre dossiês, gravações clandestinas, quebras de sigilo criminosas acopladas à proteção do sigilo de criminosos; CPIs feitas com estardalhaço que não produzem resultado algum; reportagens consistentes da mídia sobre tráfico de influência, recebimentos de propina, falsificação de documentos e outros crimes de servidores púbicos, que geram apenas uma epidemia de cegueira de altos escalões da República - que jamais "enxergam" as notórias pilhagens de patrimônio púbico perpetradas por seus subordinados de íntima confiança. É claro que com tudo isso todos passaram a desconfiar de todos e ninguém mais confia em ninguém, no Brasil. Do espaço público ao relacionamento dos cidadãos, na sociedade, o valor da confiança dissolveu-se neste país.

Um policial uniformizado sempre pôde ser um bandido disfarçado - mas nunca antes houve tão grande desconfiança de que o seja. Um médico que dá consultas e faz cirurgias sempre pôde ser um impostor, sem qualificação técnica ou habilitação profissional - mas hoje é muito mais fácil desconfiar de sua identidade. Alguém que vende produtos numa pequena loja sempre pôde ser um receptador de mercadorias roubadas - mas hoje despertará muito mais suspeitas.

Como parecem ter-se tornado muito mais flexíveis e frouxos os padrões éticos da República, muitos podem achar que a sociedade brasileira pode desenvolver-se em meio à plena desconfiança coletiva. Mas isso não é possível, porque esgarça o tecido social. Não nos esqueçamos de que uma das características do totalitarismo é, justamente, a desconfiança levada ao relacionamento das pessoas nas comunidades e até dentro de sua própria família - com jovens instruídos a delatar os próprios pais, se estes tivessem atividades ou ideias contrárias às diretrizes do Partido ou do Líder.

Eis por que a sociedade brasileira deve escolher, no próximo dia 31, quem achar que tem as melhores condições tanto de recuperar o destroçado valor do mérito quanto de empreender, no País, um esforço de recuperação do valor da confiança. É preciso considerar que estará mais preparado para tais empreendimentos quem demonstre mais transparência em sua trajetória e capacidade de trazer para a vida político-administrativa convicções próprias, a serviço de toda a coletividade - e não de partidos ou grupos.

JORNALISTA, ADVOGADO, ESCRITOR, ADMINISTRADOR DE EMPRESAS E PINTOR.

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