domingo, outubro 24, 2010

FERNANDA TORRES

Decrimocracia 
Fernanda Torres
FOLHA DE SÃO PAULO - 24/10/10

É um choque perceber que, além das suspeitas clássicas de corrupção, existe uma diretamente ligada à eleição


APROFUNDAMENTO DAS diferentes agendas dos candidatos? Esquece. O segundo turno começou temente a Deus e ameaça terminar em tiro.
Lula jura que o objeto que acertou a cabeça de Serra não passou de papelão. Serra, além de tonto, se mostrou indignado.
Um perigoso saco plástico cheio d"água atingiu o carro da comitiva de Dilma em Curitiba.
O sigilo fiscal de pessoas ligadas a Serra teria sido quebrado por adversários dentro do próprio PSDB e depois jogado aos tigres pelo PT.
Watergate perde.
Grande parte da energia dos dois combatentes foi gasta em rezas e na tentativa de convencer o eleitor de que os supostos desvios financeiros para custeio de campanha, tanto no Distrito Federal quanto em São Paulo, teriam acontecido à revelia deles.
Dilma afinou o discurso e afirma que Erenice Guerra errou ao usar o poder de seu cargo em benefício da própria família e o governo acertou em agir com prontidão, afastando os envolvidos e abrindo sindicância. Nenhum dirigente é capaz de saber de tudo o que ocorre à sua volta e ponto final.
Erenice aceitou a reprimenda de maneira exemplar. Não deu nenhuma declaração que comprometesse Dilma ou o PT e, ao contrário de Paulo Preto, jamais reclamou por ter sido abandonada na beira do caminho.
A política requer um pacto de confiança figadal.
Que o diga Joaquim Roriz e sua senhora, a Weslian Perpétuo Socorro Roriz. Depois do advento do divórcio, da pílula anticoncepcional e do amor livre, poucos são os que podem contar com o perpétuo socorro de uma esposa como a do ex-governador do DF.
Numa profissão em que o acesso à informação privilegiada e aos contratos faraônicos de energia, transporte e comunicação gera fortunas e perpetua o poder, restringir o círculo de amizades é um cuidado imprescindível.
O grande choque da democracia recém restabelecida no Brasil é perceber que além das suspeitas clássicas de corrupção, que sempre envolveram os poderosos, existe uma outra, nova, relacionada diretamente à corrida eleitoral.
Muitos dos recentes escândalos, comprovados ou não, rondam o financiamento de uma máquina chamada eleição.
Com raríssimas exceções, todos os partidos têm custos superiores aos declarados para lançar seus candidatos nas ruas. O efeito colateral de tamanha informalidade são os milhões em caixas dois e os maços de dinheiro escondidos em cuecas, bolsos e sapatos dos mais desavisados.
Os que assumem o papel de cuidar da circulação sanguínea do dinheiro vivo do guichê de apostas eleitoral são peças tão fundamentais quanto a senhora Weslian para o ex-governador Joaquim Roriz. Diante de qualquer problema, sabem que sofrerão na pele a malhação de Judas pelo bem de um projeto político.
A solitária figura de PC Farias é um exemplo sinistro do fato. Quando ocorreu o mensalão, o PT ameaçou retroceder as investigações até o período em que o PSDB estava no comando, numa espécie de atire a primeira pedra aquele que nunca pecou.
Como curar a política desse incurável desvio congênito?
Não seria exagero sugerir que, desse jeito, a democracia leva ao crime.


FERNANDA TORRES é atriz

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