domingo, setembro 12, 2010

ELIO GASPARI

Miro feriu a censura, falta sepultá-la
 ELIO GASPARI

O GLOBO - 12/09/10

Graças ao deputado Miro Teixeira, o debate em torno da liberdade de expressão mudou de patamar em abril passado, quando ele detonou a Lei de Imprensa no Supremo Tribunal Federal. Era um entulho da ditadura e foi mandada ao lixo, acompanhando um voto do relator do processo, ministro Carlos Ayres Britto. Infelizmente, a censura esgueirou-se pelos cantos das leis e dos tribunais, edificando um absurdo, segundo o qual a expressão dos brasileiros é livre em todas as ocasiões, salvo durante as campanhas eleitorais, como se esta não fosse a ocasião em que ela é mais necessária. 

Miro Teixeira levou ao Supremo a seguinte formulação: todo cidadão ou empresa é responsável pelo que escreve ou publica, nas formas da lei, depois (repetindo, depois) da propagação da notícia, ou da opinião. Isso pode custar dinheiro ou até mesmo a liberdade ao infrator. O contrário é a censura, proibida pela Constituição. 

Em menos de dois meses, o Judiciário foi acionado tanto pelo PT como pelo PSDB. Um não queria que o outro usasse a imagem de Lula. O outro constrangeu o governo, levando-o a suspender o programa radiofônico do Presidente da República. Um jornal mineiro foi multado por ter feito “propaganda eleitoral antecipada” de José Serra. Uma das provas disso estava numa fotografia com faixas do candidato. A excentricidade chegou ao picadeiro quando o TSE, com base numa lei caduca, pretendeu proibir piadas que “degradem ou ridicularizem” candidatos. Era o conflito com os humoristas. Quando alguém se mete em briga com palhaço, pode estar certo: o profissional é o saltimbanco; o palhaço, quem sabe? 

Felizmente, num julgamento do Supremo que levou novamente Miro Teixeira à tribuna e o ministro Ayres Britto a uma nova reflexão em torno da liberdade de expressão, a norma foi mandada ao arquivo. 

A campanha eleitoral está nos seus últimos dias e o estrago que a censura podia ter feito já se consumou. Nos próximo meses, o debate poderá ser retomado. Se a Constituição diz que não há censura e se o Supremo já decidiu que é assim, falta terminar a faxina. Todo mundo defende a liberdade de expressão, salvo quando ela se torna incômoda, ou mesmo abusiva, criminosa. O remédio para as malfeitorias não está na tesoura, mas nas leis que protegem os cidadãos e penalizam aqueles que as violam. A ideia segundo a qual “algo deve ser feito” embute um drible na Constituição. O que deve ser feito está há tempo nas leis, basta aplicá-las. 

Durante dez anos, de 1968 a 1978, a imprensa brasileira foi submetida a formas variáveis e seletivas de censura. O principal responsável pelo fim da censura foi um general que, sinceramente, condenava o voto direto para a escolha de governantes, a interferência do Congresso em matéria orçamentária e a liberdade de imprensa. Chamava-se Ernesto Geisel. Tendo governado o país de 1974 a 1979, aprendeu que ela não funcionava, contaminando o governo ao encobrir corruptos. 

Campo minado 

Numa das camadas geológicas das anomalias que desembocam na fabricação de dossiês, está a relação incestuosa de órgãos públicos com empresas de assessoria de comunicação. 

Em geral, ministérios e empresas estatais dispõem de serviços funcionais próprios (mal pagos), mas sempre há poderosos brilhantes, capazes de casar contratos de publicidade com serviços (caríssimos) de assessoria personalizados. Essas terceirizações atendem preferencialmente aos interesses políticos e pessoais dos ministros ou maganos do que a políticas públicas de que eles devem cuidar. 

Disso resulta que às vezes um cidadão assessora um magano na segunda-feira e um empresário com interesses na área do doutor na terça. Mais tarde, abre sua própria empresa e vai montar dossiês. 

Rio 2 x SP 1 

Durante anos o governo do Rio carregou nas costas a má fama de não adotar uma tarifa semelhante à do Bilhete Único de São Paulo. 

Em novembro, entra em vigor a tarifa do Rio, ultrapassando o alcance da paulistana, pois estará integrada à rede intermunicipal do Estado, onde o BU vigora há meses. 

Know-how 

Para a história da deposição de Fernando Collor: 
Em 1992, durante os trabalhos da CPI que investigava a quadrilha de Paulo Cesar Farias, os deputados trabalharam todo o tempo com uma declaração de bens do tesoureiro do presidente surripiada por petistas, que a extraíram do banco de dados da Receita Federal. 

Ao apagar das luzes da CPI, os doutores perceberam que trabalharam em cima de um ilícito. Só então um parlamentar foi ao Ministério da Fazenda com um ofício capaz de disfarçar a malfeitoria, obtendo um documento legítimo.

Celulares, privadas e “universos paralelos” 
Em abril passado, os mastigadores de números da ONU surpreenderam o mundo ao mostrar que, na Índia (1,1 bilhão de habitantes), só 31% da população tinham acesso ao saneamento básico, enquanto 45% dos indianos tinham celulares. Privada x celular seria um indicador daquilo que o colunista americano Roger Cohen chamou de “universos paralelos”. 

A Pnad de 2009 mostrou uma situação parecida em Pindorama. Dos 190 milhões de brasileiros, 78 milhões não têm acesso ao saneamento, enquanto há no país 162 milhões de celulares. (Como há pessoas que têm mais de um aparelho, esse número não pode ser diretamente associado à população.) 

É possível que essa comparação seja um fútil exercício estatístico, mas a ideia dos “universos paralelos” é estimulante. O cidadão mora em Itaboraí (RJ), não tem latrina, mas fala com a avó em Tauá, no interior cearense. Os serviços de comunicações, privatizados, expandem-se com mais vigor, e muito maior rentabilidade, que o saneamento estatal. Ademais, não se conhece caso de pessoa que tenha trocado saneamento por celular. 

O cidadão com celular entra num universo onde pode se informar e reivindicar melhores serviços públicos. (Mesmo sabendo-se que 82% dos celulares brasileiros são pré-pagos.) 

O mundo de “universos paralelos”, com mais celulares do que privadas, torna-se chocante quando se vê a expansão mundial do mercado de água engarrafada. No próximo ano, ele valerá 86 bilhões de dólares, 51% acima da cifra de 2006. A degradação (ou o medo) da qualidade da água da torneira criou um hábito regressivo. No século XIX, o andar de cima de Londres consumia água encanada. Quem a comprava a granel era a patuleia, pois as fontes públicas espalhavam cólera. O Brasil é o 4 mercado consumidor de água engarrafada, depois de EUA, México e China. Como a própria associação das empresas do setor reconhece, há marcas de “mineralizadas” que são apenas água da torneira (tratada com dinheiro da Viúva) enfeitada com alguns sais. 

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