quarta-feira, junho 09, 2010

ROBERTO DaMATTA

Pensamentos selvagens

Roberto DaMatta
O Globo - 09/06/2010

Quando tinha uns 8 ou 9 anos chupei uma laranja tão gostosa que acabei engolindo um caroço. Assustado, corri para o quintal onde, ao lado de um velho mamoeiro e de algumas bananeiras, jazia abandonado um único pé de laranja. Ao apalpá-lo, notei os espinhos e a dureza do tronco que, no final daquela tarde de janeiro, escureciam ao som do piano tocado por mamãe. No dia seguinte, rodeei a varanda onde meu avô e tios discutiam, com aquela paixão destinada a fabricar diferenças nas famílias, a "carestia da vida" e reclamavam do governo. Estava obviamente só e precisava urgentemente saber se o caroço engolido teria consequências. Será que ia nascer um pé de laranja dentro de mim?

Na entrada da sala de visitas, topei com vovó. "Eu engoli um caroço de laranja..." - falei com aquela voz dos desgraçados. Ela olhou para mim e disse sem pestanejar: "Engoliu um caroço? Está perdido! Vai nascer uma laranjeira na sua barriga e logo os espinhos vão furar o seu corpo!"

Esse caroço de laranja foi seguramente a primeira inquietação da minha vida. Tomei consciência do mundo por meio de um caroço de laranja! Entre os outros meninos e eu, interpunha-se um caroço de laranja e, com ele, a morte próxima ou um futuro aleijão. Meus irmãos e amigos eram os "caras": eles jamais haviam engolido um caroço de laranja. De dentro de mim, entretanto, estava prestes a surgir uma frondosa laranjeira.

No limite da preocupação, apelei para tia Amália, solteirona e contadora de histórias, irmã de meu pai: "Titia, eu engoli um caroço de laranja!" "E daí? - respondeu ela casualmente - todo mundo engole de vez em quando um caroço..."

Aprendi que preocupações humanas são como o ar. Concretas, fazem voar um avião; diáfanas, esfumam-se como os fantasmas. Tudo depende do modo de ver e, mais que isso, viver. Creio que foi por causa disso que eu sempre pensava em laranjas quando lia e estudava "O pensamento selvagem", do grande Claude Lévi-Strauss.

A primeira vez que comi bacon com ovos, um must dos quebra-jejuns americanos, foi na casa de uma inglesa no bairro do Ingá, em Niterói. Era uma residência "moderna", simpática, com uma varanda acolhedora e muitas janelas. Ali residia uma família inglesa cuja herdeira era uma moça de uns 20 anos que morava absurdamente só. Meus pais, tios e avós viviam consternados com essa solidão da jovem - vamos chamá-la de Mary, esse nome sempre velho e grandioso para os protestantes que o baniram de sua doutrina.

O que para a minha família era um castigo, para Mary era a glória e o gozo. Livre dos controles das moças de então, ela namorava e saía com quem lhe dava na telha. Ademais, pouco se lixava - como ocorre com os nossos administradores públicos eleitos pelo nosso voto livre e competitivo - com a opinião de uma vizinhança que controlava a vida alheia pelas venezianas, essa incrível invenção árabe-ibérica.

Penso que foi meu irmão Romero que chegou com a novidade:

- Você quer comer bacon com ovos, como nos filmes?

- Claro, mas onde?

- Na casa da Mary, a inglesa maluca...

Foi Mary quem pela primeira vez me deu esse "bacon com ovos", cujo cheiro delicioso me encantou os sentidos. Nossa turma de oito ou nove meninos comeu com gosto essa coisa de cinema que não era bem uma "comida" no sentido brasileiro do termo.

Findo o prato, Mary colocou-nos em fila e, como o governo, sentou-se numa cadeira de vime e cobrou um insólito (e doce) imposto. Demandou de cada um de nós um beijo na boca. Era um misto de pagamento e de treino, disse com uma casualidade pervertidamente encantadora. Obedecemos e, um a um, demos demorados beijos na boca na inglesa que ria de nossa vergonha e falta de jeito.

Toda vez que chega a temporada eleitoral, tão impositiva quanto as estações do ano do Hemisfério Norte, e eu a vejo crescer com a presença de um monte de figuras patéticas que falam a mesma coisa sobre o Brasil e mendigam votos, digo a mim mesmo: eis o verdadeiro pensamento selvagem! Primeiro, porque ele tem como alvo dar, como os caroços de laranja e os bacon com beijos, um sentido ao mundo. E, na nossa política, isso significa juntar democracia igualitária com sujeitos que jamais deixaram de pensar o Brasil como sendo feito de senhores e escravos, de superiores e inferiores, de bostas e de ricos, poderosos e famosos. Depois porque Lévi-Strauss enganou-se. Há, sim, um pensamento selvagem produzido por selvagens. São esses trogloditas e malandros que entram nas nossas casas para pedir voto em nome do bem que seus partidos vão proporcionar ao Brasil, enquanto nós pensamos no enorme bem que faríamos ao Brasil, colocando-os - ressaltando, é claro, as velhas, cansativas e enganosas exceções de praxe - a serviço de algum psiquiatra. Então, depois de pensar essas coisas, tento comer bacon com ovos ou penso no caroço que está dentro de mim.

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