segunda-feira, maio 31, 2010

MARCELO DE PAIVA ABREU

Brasil fanfarrão

Marcelo de Paiva Abreu
O Estado de S. Paulo - 31/05/2010
 

As avaliações das ações diplomáticas brasileiras em relação à política nuclear do Irã têm sido marcadas por intensa radicalização das análises. Obra de gênio ou protagonismo irresponsável? É uma história sem mocinhos. Mas alguns são mais bandidos do que outros. O Brasil, buscando exposição para consolidar o seu pleito por reconhecimento como voz global. Os EUA, com posição mais marcada pelas limitações da sua política interna do que por compromisso efetivo com a contenção do projeto nuclear iraniano. O Irã, signatário do Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP), em busca de formas de se desvencilhar de suas obrigações e disposto, em meio a imprecações contra Israel e os EUA, a desenvolver armas que possibilitem o reequilíbrio estratégico no Oriente Médio. No fundo da quadra, na raiz da reação iraniana, Israel, não signatário do TNP, confiando em seus artefatos nucleares como peças cruciais de dissuasão a um ataque de vizinhos hostis.

A análise de custos e benefícios indica que, embora a intermediação brasileira tenha aumentado a visibilidade global do Brasil, a postulação a um assento no Conselho de Segurança da ONU foi negativamente afetada. As relações bilaterais com os EUA se deterioraram ainda mais, a despeito das assertivas diárias de altos funcionários brasileiros de que elas nunca foram tão boas. Já antes da visita de Lula a Teerã era clara a animosidade de círculos do governo dos EUA quanto ao que diagnosticam como antiamericanismo visceral da atual diplomacia brasileira.

A controvérsia em torno da carta de Obama a Lula sobre o formato de um compromisso sério iraniano em relação ao seu programa nuclear suscita mais perguntas do que respostas. Seria, obviamente, mais produtivo discutir a carta com base em mais informações sobre as circunstâncias que cercaram o seu envio e vazamento. Cabem dúvidas sobre a coerência dos EUA, ao incitar o Brasil a ser intermediário de Teerã e promover a aplicação de sanções antes que o Irã formalizasse seu compromisso. Mas em que medida o governo brasileiro se prontificou, um tanto apressadamente, a ser simples executor de política definida previamente por Washington? Faltam peças no puzzle.

A insistência dos EUA, e agora de boa parte dos membros do Conselho de Segurança, na insuficiência dos compromissos iranianos tem que ver com a concomitante declaração de Teerã de que continuará a enriquecer urânio com teor compatível com o uso em artefatos nucleares. Mesmo os russos, agora vilipendiados pelos iranianos, parecem convencidos da inadequação dos compromissos do Irã na esteira da iniciativa do Brasil e da Turquia. Para não falar da França, curioso "parceiro estratégico" do Brasil. A pergunta que fica é: o que é mesmo que o Brasil estava fazendo por lá?

Em todo o episódio, há como pano de fundo um distinto clima de saudades mal disfarçadas do Brasil Grande com ambições nucleares. Faz parte do "ethos" brasileiro lidar mal com insucessos e, também, com sucessos. Quanto ao sucesso, essa ciclotimia estrutural se manifestou pela última vez na esteira do boom econômico de 1968-1973. Muitos se lembrarão do clima de bazófia coletiva que tomou conta de um país que "ninguém seguraria". Quem viveu viu no que deu. As atuais perspectivas de melhoria do desempenho econômico estão levando a um aquecimento de expectativas que evoca a década de 1970.

Quanto às tentações nucleares, apesar de o Brasil ser signatário do TNP, como corolário da Constituição de 1988, há registro de declarações do vice-presidente da República e do ministro da Secretaria de Assuntos Estratégicos que sugerem arrependimento quanto ao assunto. No contexto do episódio iraniano essas declarações são preocupantes e é natural que provoquem desconfiança entre nossos parceiros e, sobretudo, entre nossos vizinhos. Devemos ter tanto medo do Brasil fanfarrão quanto do Brasil vira-lata.

Qualquer que seja o juízo sobre a diplomacia recente do Brasil, é evidente que Lula não terá substituto como ator principal numa tentativa de continuação da política externa brasileira baseada no protagonismo. Alguém imagina Serra ou Dilma Rousseff ? com o véu de estilo ? se abraçando ao Mahmoud Ahmadinejad do dia?

A política externa terá de ser reconstruída com base em premissas diferentes: terá de voltar a ser política do País, e não do presidente. O abandono da ênfase nos fogos de artifício abrirá caminho para uma política externa calcada em interesses concretos, com foco em resultados mais permanentes. O candidato José Serra aponta para uma prioridade essencial: a reconstrução do Mercosul, levando em conta as crônicas dificuldades em relação à sua implementação, com possível recuo para uma zona de livre comércio. Isso abrirá espaço para que o Brasil negocie acordos comerciais que deem substância a iniciativas políticas ora em curso, notoriamente no caso do bloco do Bric.

Por último, mas não menos importante, é necessário reconstruir a relação bilateral com os EUA, sem levar em conta posições principistas ingênuas e, sim, os reais interesses do Brasil.

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