quarta-feira, maio 19, 2010

BRASIL S/A

Capital de vento
Antonio Machado

CORREIO BRAZILIENSE - 19/05/10

Sem a ciranda financeira, mundo rico terá crescimento anêmico e aumento explosivo de dívida


O economista Sidnei Nehme, um dos mais antenados analistas sobre questões cambiais, abriu o seu comentário de terça-feira com uma constatação crescentemente consensual: “os mercados globais”, ele escreveu, “continuam com muitas dúvidas e pouquíssimas certezas”.

As certezas são de que a economia se enfiou em todo o mundo num enrosco danado. Como desatar os nós é a dúvida. O estudo do Fundo Monetário Internacional (FMI) que traz o quadro da situação fiscal das quase duas centenas de países associadas à organização dá uma pista sobre o que acontecia até o colapso dos mercados financeiros pela quebra do Banco Lehman Brothers e as sequelas que perduram.

Desde então, governos e analistas fizeram à exaustão a autopsia do baque financeiro que varreu o mundo, parecia amainar até uns meses atrás, dá sinais de que vem sendo superado nos EUA, onde irrompeu, e ressurge como recidiva de doença oportunista nas partes frágeis da economia global. Hoje, é a Europa. Amanhã, ninguém sabe.

Pouco estudado é o efeito que a ciranda do crédito tinha sobre a produção, o consumo, a arrecadação fiscal dos países e a renda das pessoas em todo mundo. Pelo circuito da globalização dos dinheiros e das cadeias de produção, país algum, mesmo os miseráveis, ficou de fora desse processo. Que processo? O da “criação” de riqueza.

Bastante frequente foi o de antecipação de receita pelas empresas ou de liquidação de dívida pela banca para a contratação de outras dívidas por meio da securitização de fluxos de pagamentos. Isto é, a transformação de valores a receber em outros ativos financeiros — cada vez mais distantes do fato gerador —, vendidos no mercado.

Tal sistema, conhecido por derivativos e com múltiplas variações e grau de sofisticação ainda inexpugnável para muitos analistas, é hoje demonizado, mas sem ele a economia global não teria chegado ao que foi o maior período de prosperidade desde a 2ª Guerra. Não se defende a especulação que lhe foi inerente. Apenas se constata.

Está lá no estudo do FMI, tratado na coluna de ontem. A dívida pública dos países avançados do Grupo dos 20 (G-20) — como EUA, Japão, Alemanha, França, Inglaterra e Itália —, deverá aumentar 39 pontos de percentagem do PIB medido pelo critério de paridade de poder de compra, entre 2008 e 2015. Como comparação, o FMI prevê para os países emergentes do G-20, como Brasil, China e México, um corte de dívida, no mesmo período, de 5 pontos percentuais do PIB.

A recessão é o angu
Do acréscimo de dívida pública nos países ricos, nada menos que metade, 49%, vai dever-se à recessão ou ao crescimento econômico abaixo da média histórica, frustrando a expectativa de arrecadação fiscal. A recessão e o que a provoca é o angu, não bem a crise.

Os programas de estímulo econômico (4,5 pontos percentuais dos 39 pontos de aumento da dívida) e de resgate dos bancos insolventes (7,7 pontos percentuais) corresponderão a menos de um terço (31%) do aumento total da dívida dos países ricos até 2015. A parte dos juros responderá, segundo o FMI, a 20% do acréscimo da dívida.

Economia real sem gás
O colapso do crédito pelo tranco da ciranda financeira é o grande vilão do crescimento perdido. Mas aberrante foi a exacerbação do processo, permitida pela ausência de controle oficial sobre ele.

Bancos dos EUA e Europa, no fim da ciranda, tinham compromissos de 30 a 70 vezes o patrimônio. No Brasil, tal relação nunca passou de 11 vezes. Essa alavancagem do crédito é que teve morte súbita.

Já renasceu, sobretudo nos EUA, mas com menos pique. As medidas prudenciais que os governos estudam implantar depois de arrombada a casa se destinam a frear o circuito da multiplicação dos ativos derivados de outras dívidas. Ou, mais arriscado ainda, da promessa de resultados futuros, tal como um jogo de dados. Tudo bem. O que havia era antinatural. Mas, e seu efeito sobre a economia real?

China repete Japão?
O que se suspeita é que todos os que usufruíram a riqueza virtual deletada pela crise estejam em pane. Até a China, motor industrial do mundo movido em sua origem pelo consumismo encharcado em dívida dos EUA, pode não estar imune. Em princípio, não corre o risco de ser sugada pelo redemoinho que envolve a Zona do Euro. O risco que a ronda é repetir o Japão do início de 1990 pelo mesmo motivo que o levou a passar de locomotiva industrial à estagnação que vem até hoje: uma década de crédito farto, juros baixos e suas sequelas da febre da bolsa e do mercado imobiliário. Sem o giro da especulação financeira, resta apenas a economia real. E ela pode não bastar.

Despreparo do Brasil
O quadro futuro antecipado por alguns fundos de hedge, que ganham apostando em cima do que poucos ainda viram, é que a crise durará até que a capacidade industrial existente no mundo sustentada pela demanda gerada pela alavancagem do crédito comece a ser queimada.

Em segmentos com poucos e grandes grupos, como o farmacêutico, já está em curso, com um movimento de consolidação cuja causa parece a de proteger participação de mercado e margem por meio da compra dos grupos menores para fechar. Em setores cuja margem era pequena antes da crise governos abriram uma rede de segurança. Tal medida tem sido comum no Brasil. Difícil será mantê-la sem reprodução do capital e a volta da demanda global aos níveis anteriores à crise. A questão é se estamos preparados, se aqui nem há essa discussão.

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