domingo, abril 25, 2010

JOÃO UBALDO RIBEIRO


Planejamento familiar 

João Ubaldo Ribeiro

O GLOBO 25/04/10



Basta ler as seções de ciência ou medicina dos jornais ou assistir a certos documentários, para compreender que já começou a passar o tempo em que o máximo que um casal esperando um filho discutia era o nome do pimpolho. Hoje é o mínimo, até porque me contaram que já se pode recorrer a profissionais especializados. O freguês fornece os dados necessários e o especialista consulta fontes que vão da etimologia à numerologia, a fim de determinar cientificamente o nome a ser dado à criança. Nada desse negócio de santo do dia, homenagem a artista de TV ou chamar o júnior de Djalmotércio, para lembrar os avôs Djalma e Natércio.
Agora e no futuro próximo, com os avanços da genética e das técnicas de manipulação de gametas, ovos e embriões, as discussões serão bem outras. A mais fácil de prever é em relação ao sexo da criança, o que pode ser quase trivial numa cultura como a nossa, mas deve dar grandes arranca-rabos em outros contextos. Por exemplo, há regiões em que descendentes do sexo feminino representam prejuízo certo, por causa do dote em que o velho tem que morrer, na hora do noivado da filha. Na China, segundo me dizem, o comum é também a preferência pelo sexo masculino, com a consequência de que, se for pela vontade dos seus cidadãos, em breve a humanidade se defrontará com hordas de donzelões chineses cheios de amor para dar - e felizmente não deverei estar aqui, quando essa volta de Gêngis Kan se realizar. Acho que entre nós haverá outras prioridades e não demora para aparecer um Photoshop intrauterino, talvez denominado Babyshop.
- Que é que você está achando do cabelo, assim encaracoladinho? - pergunta o orgulhoso papai, diante do monitor.
- Horrível - diz um tio. - Isso não se usa mais.
- Como, não se usa mais? O que não se usa mais é esse negócio estufado aí de que você gosta, você parece um outdoor de Itamar Franco. Minha filha vai ter cabelo cacheado!
- Cacheado não é encaracolado, deixe de ser burro, você não sabe inglês. Olhe aí na janela do programa: kinky é bem encaracolado, curly é que é cacheado. Clique no curly, dois cliques.
- Não clico em nada. Pensando bem, esse programa é pirata, é melhor não mexer nisso, outro dia ele travou e deixou a menina com um olho de cada cor e a cara tortinha, foi um custo para eu deletar. Não, o melhor é só ir no certo. Cor dos olhos dá tilt, cabelo pode dar também, acho que busto não. Olhe aqui, o programa já vem com dezoito bustos pré-formatados para escolher.
- Que horror, está se vendo que é programa americano, o menorzinho deve ter uns quatro metros cúbicos, isso aí não é peito, é um carro-pipa. Você não vai querer sua filha com uma marquise dessas em cima da barriga, vai?
- É, tem razão, mas dá para moldar aqui, é só levar o mouse com delicadeza por aqui, depois aqui...
- Cuidado! Ah, meu Deus, o útero está em linha? A placenta está conectada? Que cabo é esse na barriga dela?
- Não, não, esse cabo aí é o da webcam, para eu mostrar imagens do neném dentro da barriga para minha família, lá em Porto Alegre. Eu não faço esses retoques em linha. Primeiro eu trabalho aqui, salvo tudo e depois aplico.
- Ah, graças a Deus, ia ser um desastre. Como pai, você pode ser fantástico, mas, como usuário de computador, tenha a santa paciência.
- Isso é preconceito seu comigo, me dê uma boa razão para você afirmar isso.
- Dou duas. Os dois peitos de minha sobrinha. Ficaram nas costas, olhe aí. Se fosse em linha e você tivesse dado enter, essa menina ia ter de arranjar um marido muito especial, quando crescesse.
- Ih, cara, é verdade. Desfazer, desfazer, onde é que clica para desfazer? Se eu der Ctrl+Alt+Del, a menina some?
E, pior ainda, apesar de poderem desgastar e estressar, discussões como essa não deverão ser as mais acaloradas, porque a ciência não para e a última novidade é a participação de duas mães na constituição do ovo, ou seja do óvulo fertilizado. Os cientistas envolvidos dizem que não, mas tem quem jure que isso prenuncia o bebê coletivo, ou seja, de várias mães e pais. Imagino que vai se pegando um traço aqui, outro traço ali e se faz tudo como num jogo de armar. Deve dar muita margem à inventividade e até fico pensando nessas mães disputando no palitinho qual delas vai parir, pois, afinal, o filho pode ser de várias, mas quem vai dar a padecida no paraíso inicial terá que ser uma só.
Inútil discutir sobre se isso tudo é bom ou ruim. O ser humano sempre viveu querendo controlar aquilo com que se relaciona, inclusive o organismo de sua espécie e sua reprodução. Portanto, deve ser o progresso. Portanto, devemos preparar a sociedade para enfrentar adequadamente as novidades. No Brasil, considerando-se que somos o povo mais tudo do mundo, isso não constituirá dificuldade. O filho coletivo provavelmente será educado por um comitê de representantes de seus pais e mães. E, como as aptidões também vão ser programáveis, esse comitê escolherá, antes do nascimento e a partir de pesquisas de mercado, a profissão do menino, distribuindo quotas de participação entre os pais, que assim terão oportunidade de recuperar com lucros os investimentos feitos. Já posso antecipar a ficha de identidade de um bem-sucedido produto desses: mãe Orkut, pai Twitter, nome Chipson, profissão jogador de futebol. E o único problema dele será uma certa feiura, porque o Babyshop do SUS só dá dois megapixels.

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