terça-feira, fevereiro 02, 2010

JANIO DE FREITAS

Passar do tempo

FOLHA DE SÃO PAULO - 02/02/2010

Janio de Freitas
"Reconhecer a legitimidade da Lei da Anistia não significa apagar o passado." Nem sair dele, pelo que diz e pretende o novo procurador-geral da República, Roberto Gurgel.
Em seu parecer contrário à ação em que a Ordem dos Advogados do Brasil nega, perante o Supremo Tribunal Federal, o poder da Lei da Anistia de acobertar agentes do Estado que torturaram e mataram presos, Roberto Gurgel funda-se em uma posição anti-histórica. Revela ter, ou ao menos adota nas circunstâncias, uma concepção estática do tempo.
Diz seu parecer, como mencionado por Evandro Éboli para "O Globo", que a anistia foi antecedida de um longo debate com participação de vários setores da sociedade civil. O que de fato ocorreu. Transcreve um pronunciamento do Conselho Federal da OAB à época, assinado pelo ex-procurador-geral e ex-ministro do STF Sepúlveda Pertence, em apoio enfático à anistia como formulada. Mas Gurgel vai ao encontro de outras assinaturas, postas em um manifesto de artistas pela anistia então aceita. Para daí extrair sua conclusão:
"Acatar a tese [da OAB] para desconstituir a anistia como concebida no final da década de 70 seria romper com o compromisso feito naquele contexto histórico". A tese da OAB não é essa, mas digamos que a recusa à anistia para torturadores e homicidas de presos signifique rompimento com o "compromisso" amplo, "feito naquele contexto histórico".
A Constituição é fruto também de um dado contexto histórico. O debate que envolveu sua elaboração foi muito mais longo e muito mais intenso do que o motivado pela anistia. O valor da Constituição como compromisso histórico é de alcance nacional, não se compara ao estreito alcance jurídico da Lei da Anistia. Chamada de Lei Maior, a Constituição já sofreu, no entanto, numerosas reconsiderações, algumas frontalmente opostas ao prescrito pelo texto resultante do "amplo debate" nacional de sua criação.
As leis correspondem ao seu tempo. Não são estáticas, porque as sociedades não o são. O que quer dizer que também não o são os "contextos". Logo, o que faz "contextos históricos" não é serem permanentes e imutáveis, mas exatamente o oposto: expressarem circunstâncias. A história, vista como tempo a desen- rolar-se, é feita de transitoriedades.
O Brasil tem uma concepção particular de lei, diferente, por exemplo, do Chile, da Argentina, do Uruguai, cujas leis de anistia acompanharam as mudanças do tempo e da sociedade que fazem as respectivas histórias? Ou talvez, nos 30 anos passados desde que concessões para uma anistia se justificavam, a sociedade brasileira não tenha mudado, sua democracia não tenha avançado, o senso de direito e justiça não se tenha aprimorado aqui -como alguns parecem supor e outros desejam.

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