sábado, fevereiro 06, 2010

CESAR BENJAMIN

Ler, escrever, calcular

FOLHA DE SÃO PAULO - 06/02/10


O Brasil ainda recusa à maioria dos seus filhos a possibilidade de participar da civilização contemporânea

NÃO DEVEM passar despercebidos dois artigos publicados nesta Folha nos últimos dias. Em "Repetência e alfabetização", de 27 de janeiro, João Batista Araújo e Oliveira apresentou resultados de um teste aplicado em 338 mil alunos do segundo ao quinto ano em 350 municípios brasileiros espalhados por 25 Estados, uma amostra muito representativa. Nada menos de 70% dos avaliados foram considerados analfabetos, e 50% dos estudantes do quinto ano foram classificados assim.
No dia 4, a Folha noticiou o desempenho de alunos da rede municipal de São Paulo em matemática. Não me estenderei. Ocimar Alavarse, da USP, avaliou o resultado como "escandaloso". Um teste semelhante, em escala nacional, mostraria resultado igual ou pior. Tais avaliações mostram que o Brasil ainda recusa à maioria dos seus filhos a possibilidade de participar das potencialidades da civilização contemporânea. Estamos diante de um problema grave, antigo, estrutural, que envolve todos os níveis de governo e a sociedade. Mas não conseguimos reagir.
Há íntima relação entre a capacidade formal de expressão e os conteúdos que se deseja expressar. Em um dos Seminários de Zollikon, Heidegger pergunta: "Por que os animais não falam?". Ele mesmo responde, de maneira simples e muito perspicaz: "Porque não têm o que dizer". Quando depois se refere ao homem como "o animal falante", talvez possamos ler "o animal que tem o que dizer".
Os homens sempre tiveram muito a dizer. Todas as sociedades, das mais primitivas às mais avançadas, separadas por dezenas de milhares de anos, criaram línguas que apresentam grau semelhante de complexidade, a ponto de até hoje não ter sido possível construir uma teoria evolutiva da linguagem, esse grande enigma humano.
Pois é de uma linguagem criativa que se trata, o que nos diferencia. Adquirimos na infância a misteriosa capacidade de construir e entender um número indefinido de sentenças que jamais ouvimos e que talvez jamais tenham sido enunciadas, enquanto os sistemas de comunicação usados por outras espécies só permitem a transmissão de um pequeno conjunto de mensagens cujo significado é fixo.
Assim, além das funções de expressão pessoal e de comunicação imediata, que compartilhamos com os animais, nossa linguagem possui funções superiores que lhe são específicas, como descrição, conceitualização e argumentação.
Graças a elas, podemos desenvolver, por exemplo, padrões de crítica, a ideia de verdade, o conceito de razão. Popper é enfático: "É ao desenvolvimento das funções superiores da linguagem que devemos a nossa humanidade, a nossa razão, pois nossos poderes de raciocínio nada mais são do que poderes de argumentação crítica".
A capacidade de abstração, a formulação de explicações, a compreensão de objetos complexos -tudo isso exige o cultivo das funções superiores da linguagem, que, no mundo contemporâneo, implica o domínio pleno da leitura e da escrita, além de fundamentos de lógica que nos são transmitidos, principalmente, pela matemática.
Nenhuma sociedade poderá se manter à tona, no século 21, sem disseminar essas capacidades em suas populações. Isso exige que as crianças aprendam a ler, escrever e calcular, com proficiência, na idade adequada. É a base do que vem depois. Se isso não for obtido no tempo certo, toda a estrutura educacional do país permanecerá comprometida. Eis um grande tema para a campanha presidencial, se ela quiser ser mais que uma pantomima.

Cesar Benjamin, 55, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.

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