domingo, janeiro 10, 2010

VINICIUS TORRES FREIRE

Sujos e mal lavados na Argentina

FOLHA DE SÃO PAULO - 10/01/10


Está difícil de decidir quem tem menos razão no conflito entre Cristina Kirchner e o presidente do BC do país


A ARGENTINA está em tumulto devido ao conflito entre o governo e o presidente do Banco Central. Uma lei confusa concede uma extravagante independência ao BC, ao menos no papel. Cristina Kirchner quer dinheiro e quer recolocar o BC na linha. A disputa tornou-se espetáculo mundial. Mercadistas vituperam contra o "atropelamento de instituições técnicas e autônomas" e a "insegurança jurídica". Antes de tratar da Argentina, e dada a reação estereotipada, jeca e servil dos mercadistas locais, convém lembrar a situação do paradigmático BC dos EUA, o Fed. Seu presidente até 2006, Alan Greenspan, fazia política. Foi ideólogo e cúmplice da livre-bandalha da finança, que deu na catástrofe de 2008. Por causa disso, o Fed na prática teve de financiar governo e mercado, um escândalo.
Isto posto, volte-se à Argentina. Em dezembro, Cristina baixou uma espécie de medida provisória a fim de tirar US$ 6,6 bilhões das reservas internacionais do país, de US$ 48 bilhões. O dinheiro pagaria metade dos compromissos da dívida externa deste ano. Assim, Cristina abriria espaço no orçamento para outros gastos e tentaria facilitar a volta do país ao mercado mundial de crédito, de onde está banido faz uma década. O presidente do BC, Martin Redrado, se recusou a liberar o dinheiro. Queria que o Congresso, de férias até março, fosse ouvido. Cristina demitiu Redrado. Na sexta-feira, uma juíza suspendeu o uso das reservas e reempossou Redrado provisoriamente. Pela lei do BC deles, o governo só poderia destituir Redrado depois de ouvida uma comissão do Congresso. Como de hábito, advogados divergem sobre o assunto, assim como empresários e até banqueiros. O caso é quase pura briga política.
A política argentina é mais furiosa que a nossa e, agora, mais precária: ficou em frangalhos após o colapso de 2001-02. O país é muito mais dividido, brecha ampliada pelos tiques autoritários dos Kirchners -e porque Néstor quer voltar à Presidência em 2011. O conflito é tenso ainda porque os argentinos vivem sob medo constante de confiscos e falência do governo. Os Kirchners pegam dinheiro onde podem e não podem. Reestatizaram a Previdência a fim de colocar a mão no caixa, tomam crédito nos bancos estatais, antecipam receita com o BC (sic) etc.
Redrado, amigo dos Kirchners até dezembro, é um fariseu, além de inepto, pois a inflação é alta. Pior, é cúmplice da fraude do índice oficial de inflação, cambalacho patrocinado pelos Kirchners. Sem índice confiável de preços, furta-se do debate público o valor real da moeda. Sem que se saiba o valor real da moeda, um BC se torna um corretor de títulos e uma fábrica de papel pintado.
Mas as instituições não estão sendo "atropeladas". As instituições argentinas estão estateladas na estrada faz anos, em parte devido ao colapso decorrente de experimentos mercadistas alucinados, aplaudidos por FMI e finança mundial. De resto, a independência do BC é, em termos estritos, sempre balela (e difere de autonomia operacional, restrita a cuidados com a moeda). Mercadistas em geral querem que BCs sejam o quarto Poder, livres para tomar decisões que afetam orçamentos, dívidas, câmbio, reservas e o diabo. Em vez de atropelar instituições, querem atropelar a democracia.

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