segunda-feira, outubro 19, 2009

MARCELO DE PAIVA ABREU

Viciados em voo de galinha

O Estado de S. Paulo - 19/10/2009


Tornou-se corriqueira a incitação semipatriótica a "agregar valor". Pode ser com referência às exportações, quase sempre envolvendo crítica ao peso "excessivo" de produtos primários na pauta de exportações. Pode ser mero início de argumento em defesa de substituição de importações. Neste caso, é parente próxima do "adensamento de cadeias produtivas", neologismo abstruso que andou assolando o BNDES tucano. A palavra que necessariamente acompanha a defesa de "agregação de valor"ou "adensamento de cadeia produtiva" é subsídio em algum formato.

É difícil encontrar quem não queira, em tese, "agregar valor" a cadeias produtivas, inclusive de exportações. Se isso não ocorre, não é por falta de patriotismo, é porque o cálculo econômico privado indica que tal procedimento não seria justificável. É claro que sempre haverá um nível de subsídios que tornaria a "agregação de valor" rentável do ponto de vista privado. O problema é que os subsídios correm à conta da taxação de contribuintes que não são beneficiados pela "agregação de valor". A única justificativa razoável para subsidiar atividades que agregam valor e não são empreendidas pelas empresas é quando há falhas de mercado, quando ocorrem divergências importantes entre custos e benefícios privados e sociais. Exemplo claro é a geração de conhecimentos científicos e tecnológicos. Dadas as dificuldades notórias que enfrentam as empresas inovadoras quanto à apropriação dos benefícios gerados por suas inovações, faz sentido que o Estado subsidie tais atividades, estimulando a geração de inovação. Cabe ao Estado aprimorar a sua pontaria para subsidiar futuros sucessos e minimizar os insucessos. E, também, ter solidez institucional para assegurar que os subsídios não sejam uma crônica transferência de recursos para alguns bem-aventurados.

Há, no País, uma tradição de desconfiança quanto à dependência "excessiva" da exportação de commodities. Isso explica a ênfase, muitas vezes injustificada, na "agregação de valor" a qualquer custo. Na década de 1920 a exportação de minério de ferro foi bloqueada pelos que julgavam que o minério deveria ser processado por grande siderurgia a ser instalada em Minas Gerais. Atrasou-se por décadas a consolidação do Brasil como exportador de minério de ferro. O golpe militar em 1964 ensejou o abandono do modelo autárquico no que diz respeito ao estímulo às exportações, embora mantivesse o mercado doméstico bastante fechado às importações. Paralelamente, a farta distribuição de subsídios, bem além de simples rebates fiscais, alterou a pauta de exportações do Brasil, com o aumento da participação de manufaturados. Essa nova estrutura virou paradigma inquestionável.

Na década de 80, quando a crise fiscal cum quase hiperinflação inviabilizou a cornucópia de subsídios, começaram a surgir dúvidas quanto à estratégia econômica brasileira, explicitados por Roberto Simonsen no debate com Eugênio Gudin: forte presença do Estado e autarquia. No final da década, a estratégia econômica começou a se reorientar rumo à abertura comercial, ao alinhamento dos estímulos às exportações às regras multilaterais, à redução do papel do Estado com a privatização de empresas estatais. Juntamente com o sucesso da estabilização em 1993-94 estavam lançadas as bases para começar a superar a estagnação econômica. O presidente Lula, no seu primeiro mandato e em parte substancial do segundo, teve o mérito de sustentar essa estratégia, ampliando o escopo das políticas de redistribuição em benefício das camadas mais pobres da população. Sua enorme popularidade decorre da convergência de fatores políticos - homem do povo, líder sindical, político astuto - com o sucesso na esfera econômica, mesmo que com políticas ao arrepio do jacobinismo petista.

Essa visão otimista - e que justificaria as loas que o Brasil e o presidente vêm merecendo de analistas internacionais - requer uma revisão profunda. Uma sucessão de episódios recentes tem revelado um Lula eleitoreiro e populista em detrimento do Lula presidente, estadista e consolidador da democracia.

A pré-campanha eleitoral da ministra Dilma Rousseff e a atuação do presidente da República como seu cabo eleitoral, utilizando a máquina pública sem pejo, conflita com qualquer interpretação razoável do que seja a separação entre interesses de governo e interesses partidários. O ataque ao Banco Central, acusado de terrorismo pelo Ministério da Fazenda, por sublinhar os problemas óbvios gerados pelo explosivo aumento de gastos públicos - que não foi desautorizado pelo Planalto -, indica a erosão da política macroeconômica prudente. As peripécias relacionadas ao pré-sal indicam retrocesso quanto aos limites do papel do Estado, ao uso da política de compras públicas e à separação dos interesses dos contribuintes e dos acionistas da Petrobrás. Se houvesse dúvidas, Dilma Rousseff esclareceu-as: enrolada no "verde louro desta flâmula", arrogou-se o monopólio do patriotismo em defesa do nacionalismo, do estatismo e do protecionismo. A recente interferência do governo na Vale envolve outros retrocessos: quanto ao papel dos fundos de pensão de empresas públicas, quanto a formas de atuação do governo na gestão nas suas relações com empresas privadas, quanto a visões toscas sobre o mix de produção da empresa.

Tudo leva a crer que essas ações façam parte de plano para que o Brasil, a partir de 2011, retome o seu habitual voo de galinha, só que com um pouco mais de inflação.

*Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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