terça-feira, outubro 06, 2009

FAUSTO MARTIN DE SANCTIS

Anistia a crimes de evasão de divisas

FOLHA DE SÃO PAULO - 06/10/09


A anistia sugerida não beneficiaria nem enalteceria a sociedade, a não ser os que apostaram num caminho fácil e covarde

UM PROJETO de lei aprovado pela Comissão de Finanças da Câmara dos Deputados, a ser votado em plenário, com solicitação do deputado José Mentor (PT-SP) para que a Comissão de Constituição e Justiça não o analise, e um outro projeto de lei, este do senador Delcídio Amaral (PT-MS), que seguirá diretamente à Câmara sem passar pelo Senado, permitem a repatriação de valores no exterior mediante o pagamento de 10% a 15% a título de tributação, anistiando o crime de evasão de divisas e de sonegação fiscal.
Tal medida não se aplicaria aos valores fruto de tráfico de drogas, terrorismo, pornografia infantil, corrupção e outros. Além disso, há previsão de registro na Receita Federal com a garantia do anonimato.
Qualquer medida desse porte exige intensa discussão com a sociedade. A anistia constitui verdadeiro esquecimento jurídico de uma ou mais infrações penais e só deve ser admitida em casos excepcionais.
A justificativa econômica apresentada (o retorno ao país de bilhões de dólares) em hipótese alguma legitima a medida. Ao contrário, subverte valores indispensáveis à comunidade e permite a seus filhos menos probos a oportunidade de contribuir com valores ilícitos e de maneira desigual.
A questão econômica ganha realce num país que historicamente defende preceitos universais, até mesmo em oposição a países tidos como imperialistas.
A anistia, dado seu alcance, retroage para apagar até o crime cometido no passado, extinguindo sua punibilidade, ainda que exista sentença penal condenatória irrecorrível.
Assim, mesmo que alguém esteja condenado definitivamente, será alcançado pela medida. Sua importância é tal que a Constituição Federal determina que somente o Congresso Nacional possui atribuição para sua concessão.
Dizer que ela não se destina a valores decorrentes de graves crimes parece constituir mero pretexto diante do ultraje às pessoas de bem. Como poderá a autoridade prever que tais quantias não são fruto de graves delitos, inclusive hediondos, cuja concessão de anistia é vedada pela Constituição Federal?
Surpreende a tentativa de aprovação sem debate efetivo, prejudicando os que não investiram no exterior suas economias e apostaram no país, em respeito às leis nacionais.
Pagar tributos é o custo de viver em uma sociedade civilizada. A não legitimidade da medida parece indiscutível, pois ela privilegia os mais abastados que, por motivo exclusivamente pessoal e de risco, aplicaram seus recursos fora do Brasil, ocultando-os das autoridades brasileiras.
A garantia de anonimato mostraria excessiva preocupação. Em outras palavras, como num passa-moleque, os valores retirados da sociedade são "legitimamente" devolvidos. Trata-se de aplicação inconteste do princípio da desigualdade.
Que dizer a nossos filhos que este país, que se diz democrático, faz com que as pessoas honestas sintam-se envergonhadas pelos que driblam sistematicamente a lei e sempre obtêm os beneplácitos estatais, cujo aparato parece estar constituído, paradoxalmente, para assegurar o direito de minorias abastadas?
O pleno exercício das liberdades públicas requer, de um Estado verdadeiramente de Direito, a efetivação de valores supremos, como a igualdade e a justiça. Será que a tal anistia não comprometeria a obediência cívica, estimulando a repulsa às instituições democráticas?
Esta terra há de merecer de seus representantes conduta que corresponda à nobreza de seu povo. Não se pode invocar determinada medida que salvaguarde um momento ou um grupo pequeno e seleto, o que pode comprometer o modelo social eleito.
Tratar abrupta medida com a naturalidade com que vem sendo apresentada, como mais um mecanismo legítimo, não resiste a uma análise adequada, uma vez que se apresenta com embasamento puramente econômico, insuficiente, até porque a lei, a expressão real de um povo, deve se constituir em medida que aperfeiçoe a sociedade em que vivemos.
A anistia sugerida não beneficiaria nem enalteceria a sociedade, a não ser os que apostaram num caminho fácil e covarde.
A quem realmente deseja regularizar situação ilícita bastaria realizar espontaneamente o retorno de seus valores, admitindo erros do passado, caso em que não faltará boa vontade dos órgãos estatais para equacionar da melhor forma sua situação. O direito ao arrependimento não estaria, nunca, inviabilizado.
Nenhuma ordem jurídica pode se sustentar se confiscados direitos democráticos básicos como a igualdade e a justiça social.

FAUSTO MARTIN DE SANCTIS é juiz federal titular da 6ª Vara Federal Criminal em São Paulo, especializada em crimes financeiros e em lavagem de dinheiro.

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