terça-feira, outubro 27, 2009

ARNALDO JABOR

Besouro e outros bichos


O GLOBO - 27/10/09


Este filme “Besouro”, de João Daniel Tikhomiroff, surge num momento de “passagem” do cinema brasileiro. Vivemos divididos entre um cinema de autor e um cinema de mercado, entre um cinema que queremos fazer e um cinema que deveríamos fazer. Com a vitória do mercado como deus único, o desejo de significar alguma coisa de importante para o cinema ou para a cultura virou quase um desvio da norma.

Há alguns anos, começaram a vir para cá famosos “script-doctors”. Syd Field era um deles; as regras de ouro de Hollywood passaram a ser ensinadas aos diretores do país, como axiomas, dogmas a serem cumpridos sob pena do fracasso. Leis brancas para filmes mestiços, leis de senhores para serem obedecidas: o mocinho, o bandido, o bem, o mal, a redenção final obrigatória.

Há pouco tempo, um executivo declarou que não é mais necessário que o autor tenha amor ao cinema; ao contrário, isso até atrapalharia. Quem filma agora são os produtores.

No filme “Besouro” há alguma coisa parecida com filmes da década de 1960, do surgimento do Cinema Novo – o cinema livre dos estúdios, a câmera denunciando injustiças como uma arma.
A ação se passa em Santo Amaro da Purificação, município do Recôncavo onde nasceu a lenda do capoeirista, no começo da década de 1920. Ali, a comunidade de negros tenta se livrar do passado recente – pouco mais de 20 anos desde a abolição da escravidão – e em muitos lugares o trabalho assalariado dos negros e a discriminação permanente não era muito diferente do regime escravista.

“Besouro” surge em meio a outros filmes brasileiros, a outros bichos que voam mais baixo, buscando o sucesso comercial tecnicamente programado em computador. Depois de décadas de publicidade, acho que João Daniel queria ar, voar. “Besouro” é um filme de ruptura com as regras obrigatórias e também com a própria experiência em propaganda.
O filme tem uma idéia na cabeça: mostrar a dificuldade de individuação dos homens pobres (mais que negros) através de uma cultura que não chegou pelas caravelas, mas nos navios-negreiros. Assim, mostra que o escravismo não cessou com a abolição e também que o racismo vai mais além da pele – se estende a tudo que é “diferente”.

“Besouro” denuncia como a religião afro-brasileira é sabotada por canalhas e exploradores da religião católica ou evangélica.

Em vez de um Deus ameaçador ou este recente “deus de mercado” que compra almas pelos dízimos, o candomblé é múltiplo, vê os vários ângulos da personalidade humana; é uma religião “material”, com deuses que amam, matam, transam, se vingam, protegem, tudo ligado ao ventre da natureza. Muitos deuses são melhores que um só: mais democráticos.

Não é por acaso que a personagem do Besouro vai fazer sua formação na mata virgem; lá ele fica perto dos animais, do sapo, das cobras, dos besouros. Lá ele também domina como um aprendiz “zen” as técnicas de vencer os inimigos, mas também de re-civilizar a corrupta e cruel sociedade do latifúndio e do escravismo, do racismo e da exploração sexual das cativas, de transformar o mundo num lugar próximo à raiz da vida natural.

Quem são os poderosos que o “Besouro” enfrenta? Só fazendeiros e capatazes cruéis? Não. No estilo do filme, nos vôos de câmera, no tempo indeterminado e transiente, no ar, no sol, o filme mostra que quer esquecer o individualismo de enredos de pequenos burgueses em crise. Assim, ele vai até a alegoria épica, chega a usar os deuses misturados na trama dos homens, como numa odisséia negra. Ao lado de Besouro se encontram os orixás, que lhe dão poderes – como voar e ter o “corpo fechado” – e a arte de uma capoeira mágica... Um dos grande momentos é o surgimento de Exu como protetor didático, de Oxum, carinhosa e maternal ou de Iansã, protegendo o herói guerreiro.

Joao Daniel fez um filme épico, contra a corrente realista de hoje, com uma fotografia excepcional também do equatoriano Enrique Chediak, com direção de arte de Cláudio Amaral Peixoto e ótimos figurinos de Bia Salgado.

O besouro é um bicho feito para não voar; mas voa. O filme também.

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