sábado, setembro 05, 2009

BETTY MILAN

REVISTA VEJA
Betty Milan

O tabu da morte

"Perder o ser amado não significa deixar de tê-lo
ao nosso lado. Graças à memória, ele pode permanecer
conosco. Fazer o luto é entender isso. Implica tempo
e um trabalho subjetivo que leva à consolação"

Ercole de Robert/The Bridgeman Art Library/Getty Images

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O amor e a morte são os dois grandes temas da vida. Sobre o primeiro, recebo muitos e-mails endereçados à minha coluna em VEJA.com. Sobre o segundo, raramente alguém me envia correspondência. Resolvi escrever a respeito da morte porque ela é inelutável – mais dia, menos dia, todos nos confrontamos com o fim.

Entre nós, ocidentais, o tema da morte é um tabu. Erguemos um muro entre os mortos e os vivos, como se assim pudéssemos afastar-nos dela. A palavra de ordem é não falar disso. À diferença de nós, os povos primitivos cultuavam os ancestrais não só para entrar em contato com o morto, no intuito de reverenciá-lo, como para se fazer ajudar por ele. O morto era integrado ao mundo dos vivos, que se separavam dele sem perdê-lo.

Na falta de um culto dos ancestrais, o recurso que nós temos para superar o drama da morte é a rememoração. Perder o ser amado não significa deixar de tê-lo ao nosso lado. Graças à memória, ele pode permanecer conosco. Fazer o luto é entender isso. Implica tempo e um trabalho subjetivo que leva à consolação. O chamado "trabalho de luto", no linguajar dos psicanalistas.

A morte tem de ser desdramatizada para que nós possamos sobreviver a ela, e não desperdiçar o tempo que nos resta. Já no século XVI, o pensador francês Montaigne, que refletiu sobre praticamente todos os temas de interesse, diz em seus Ensaios que é preciso não estranhar a morte, incitando o leitor a se acostumar com ela porque, "como não sabemos onde ela nos espera, é melhor esperá-la em todo lugar". Para Montaigne, essa é a condição da liberdade.

Acostumar-se com a ideia da morte não significa se preocupar com ela. Nada é pior do que viver angustiado diante da ideia de não poder conservar o ser amado, e conservar-se vivo, até o final dos tempos. Quem vive assim torna-se infeliz antes da hora. Preocupar-se com o futuro significa perder o presente, deixar de gozar a existência. Temer a perda é o mesmo que perder.

Carlito Maia, que foi, sobretudo, um filósofo popular brasileiro, dizia que de nada adianta preocupar-se com um problema. Temos de nos ocupar dele e ponto. Porque ocupar-se é uma forma de superar o problema – e viver. Preocupar-se, ao contrário, é uma forma de se enterrar em vida – e morrer. Sabedor disso, ele era tão leve quanto solidário. Valia-se da sua posição prestigiosa na Rede Globo para exercer uma espécie de flower power – celebrava, por exemplo, os eventos culturais de São Paulo, enviando aos amigos flores com bilhetes inesquecíveis. Não está mais vivo, porém, graças ao seu espírito, continua entre nós. O escritor vive para escrever; Carlito Maia viveu para merecer a palavra "saudoso". É bom tê-lo ao lado.

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