sexta-feira, maio 22, 2009

JOÃO MELLÃO NETO

Tribunal não é tribuna


O Estado de S. Paulo - 22/05/2009
 
Alemanha Ocidental, final da década de 1960: detido pela polícia - após participar de um ato público contra a instalação de uma usina nuclear -, um notável professor alemão foi levado a julgamento na cidade mais próxima. Alegou em sua defesa que seus motivos eram justos e que até mesmo o magistrado haveria de concordar com eles.

O juiz não se comoveu com o argumento e o condenou a pagar uma pesada multa, por ter bloqueado o tráfego numa rodovia. Ao prolatar a sentença, afirmou: "O senhor pode mesmo ter motivações nobres, mas isso não o autoriza a infringir as leis. Caso contrário, estaríamos nos remetendo a uma concepção de Direito e a um estado de coisas que tanto eu quanto o senhor não achamos conveniente reviver."

O acadêmico em questão era o filósofo e sociólogo Ralf Dahrendorf e foi ele mesmo que tratou de relembrar o fato num de seus livros.

Aqui, no Brasil, talvez pelo fato de não termos vivenciado tragédias totalitárias, há muita gente que entende que o Direito - e seus Princípios Fundamentais - devem sujeitar-se à moral da ocasião.

Recentemente - fato lembrado em meu último artigo - um ministro do Supremo Tribunal Federal conclamou publicamente um colega a ir às ruas. O que pretendeu dizer é que os magistrados não devem julgar apenas em função das leis, dos autos e das jurisprudências, mas também do alarido emanado das multidões.

À primeira vista, parece fazer sentido. A ninguém ocorre defender juízes herméticos, formalistas e indiferentes às dinâmicas da sociedade. Mas devem existir limites a essa permeabilidade. O juízo das massas é instável, passional e volúvel. O povo, não raro, erra. Não porque não tenha senso de justiça, mas porque quase nunca detém um volume de informações suficiente para poder formar juízos corretos e inapeláveis sobre cada assunto. É justamente por isso que existem leis e tribunais.

Eu me recordo de uma cena antológica, numa novela de TV, em que uma professora, ministrando a aula inaugural de um curso de Direito, afirmava, sob aplauso dos alunos: "Devemos lutar pelo Direito, mas, quando este não coincide com a justiça, devemos ficar do lado da justiça."

Esse pensamento, exaustivamente repetido, provoca uma adesão quase que imediata. Todos nós, em princípio, concordamos com ele. Mas estará certo? Nem sempre. Depende do que se entende por justiça.

Há princípios de justiça que são permanentes e emanam de preceitos morais universais, como também há outros - menores - que se lastreiam na justiça da ocasião. Além disso, a verdade é que o conceito de justiça vem sendo desgastado pelo fato de que todas as correntes políticas e ideológicas pretextam sempre agir em seu nome.

O Direito, por sua vez, procura fundamentar-se em preceitos mais duradouros. Os chamados Princípios Fundamentais do Direito são normas de valor consensual e atemporal, que não se lastreiam em doutrinas efêmeras, modismos jurídicos ou sensos de justiça conjunturais.

O fato é que, se os argumentos lastreados unicamente no Direito claudicam, as argumentações lastreadas exclusivamente na justiça claudicam muito mais...

Os juízes não podem decidir contra legem - contra o enunciado da lei. Mas no passado recente já houve quem defendesse que fosse de outra forma.

Os adeptos do "Direito livre", através do mundo, e do "Direito alternativo", no Brasil, defendiam a tese de que, em nome da justiça, os magistrados deveriam julgar de acordo com as "demandas reais da sociedade", e não com base nas leis.

Parece fazer sentido, mas ao agir dessa maneira os juízes enveredariam por um terreno movediço e quase sempre minado. O que seriam as tais "demandas reais da sociedade"? Quem teria legitimidade suficiente para enunciá-las?

De mais a mais, sempre haverá quem, à direita e à esquerda, esgrima argumentos contra o império das leis.

Meu filho, futuro advogado, apresentou-me a tese de um professor, marxista, para quem o Estado de Direito não passa de um "artifício criado para legitimar a dominação da burguesia sobre a sociedade". Em troca apresentei-lhe o programa do Partido Nazista alemão, que propunha eliminar o Direito Romano, pelo fato de este ter um caráter "individualista e antissocial" e servir a uma "ordenação materialista do mundo". O que vale para Lenin vale também para Hitler... 

O fato é que ao arrepio das leis não há salvação.

Pior: uma vez aberto o precedente, quem garante que aventureiros não viriam a se apossar de tal bandeira?

O tal juiz alemão citado por Dahrendorf estava coberto de razão. Nenhum magistrado se pode arriscar a interpretar livremente as leis. Ele até poderia fazê-lo dentro de uma postura ética e escrupulosa. Mas os seguintes agiriam da mesma forma?

Quanto à vocação justiceira de alguns magistrados, vale lembrar o desabafo de um ex-ministro dos governos militares. Ele fora um entusiasta dos métodos "revolucionários" de busca de provas, na calada da noite, em residências de suspeitos. Até que, certo dia, foi arrombado o cofre doméstico de um empresário. Nada se encontrou de errado, mas veio a público um documento - para ser aberto após a morte do cidadão - no qual ele reconhecia a existência de um filho bastardo. Isso bastou para destruir a família do dito cujo e levá-lo à morte, de ataque cardíaco. Depois desse episódio, o ex-ministro nunca mais ousou repetir o seu bordão favorito: "Quem não deve não teme..."

A sociedade não carece de magistrados messiânicos. O que ela precisa é de juízes compenetrados que, no dia adia, façam cumprir as leis.

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