domingo, fevereiro 08, 2009

AUGUSTO NUNES

Sete Dias

Jornal do brasil - 08/02/09

Bons companheiros – Sarney, Renan e Collor mostraram que nenhuma aliança é impossível

No século passado, se o destino juntasse no mesmo saloon José Sarney, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor, sobraria chumbo até para o pianista. "O presidente Sarney é o maior corrupto do Brasil", recomeçavam o tiroteio Lula e Collor. "O deputado Lula é um primitivo", revidava Sarney – além de "analfabeto", mirava na testa Collor. "O governador de Alagoas é um canalha", puxava o gatilho Sarney, antes que a ascensão e a queda de Collor sugerissem a Lula o tiro de misericórdia: "Foi o mais safado dos presidentes" .

Nada como um século depois do outro. Em 2003, meia hora de conversa (animada por meia dúzia de nomeações) bastou para que Lula e Sarney virassem amigos de infância. Em 2007, na primeira visita do senador Collor ao chefe de governo, ambos foram assaltados pela sensação de que choraram no mesmo berçário. No começo da semana, Sarney e Collor descobriram que cresceram na mesma rua. E se lembraram de que, quando chovia, nadavam na mesma enxurrada frequentada por aquele parceiro pernambucano.

Encerrada a eleição para a presidência do Senado, Lula ficou feliz com a vitória de Sarney, que ficou feliz com o apoio militante de Collor, que ficou feliz por ganhar de presente o comando da Comissão de Relações Exteriores. E todos ficaram felizes com o bom trabalho do ex-amigo, ex-inimigo e novamente amigo dos três Renan Calheiros, que ficou feliz por ter-se vingado do candidato derrotado Tião Viana, o único que não ficou feliz. "Venceu a base aliada", consolou-o Lula, que diria a mesma frase caso o senador petista triunfasse. Há lugar para qualquer partido na "base aliada". E há carteirinhas de sócio sobrando na portaria do Clube dos Amigos do Presidente.

Ali, Lula, Sarney e Collor trocam afagos na mesa principal, sob olhares aprovadores de centenas de associados que também protagonizam parcerias improváveis. A visão panorâmica da paisagem informa que os políticos brasileiros não enxergam diferenças entre o convívio dos contrários e a promiscuidade dos amnésicos de araque.

O Brasil democrático reduziu a anacronismos criminosos certos usos e costumes rotineiros nos grotões – cauterizar feridas morais com sangue, por exemplo, ou interromper com trabucos uma ofensiva retórica. Mas não foram abolidos o sentimento da honra, nem a capacidade de indignar-se, tampouco a regra já vigente no tempo das cavernas: há limites para tudo. Todos podem fixá-las como bem entenderem, mas segue obrigatória a demarcação da fronteira que separa o ataque duro do insulto imperdoável, ou da infâmia que exige rupturas definitivas.

Só quem primeiro perdeu a vergonha consegue encontrar depois dos 50 anos (ou dos 60, ou mesmo dos 70) amigos de infância com os quais nunca conviveu. Só a demissão da autoestima e a capitulação que desonra permitem a celebração de alianças tão chocantes quanto acasalamentos de clubes de swing. A praga das parcerias obscenas só serve para atestar que certas demonstrações de pusilanimidade exigem dos protagonistas muito mais coragem que qualquer ato de bravura.

 Cursinho de direito para crianças

Concebido para enfiar noções jurídicas rudimentares na cabeça de bacharéis aos quais falta memória e sobra esperteza, o cursinho de direito para crianças pescou na discurseira do ministro Tarso Genro os temas explorados na aula inaugural da quarta-feira. Primeiro, Tarso aprendeu que "decisão soberana" pode rimar com "decisão desastrosa". Em seguida, soube o que é dupla cidadania e descobriu por que a Itália não devolveu Salvatore Cacciola ao Brasil. A lição de hoje vai explicar que Luiz Eduardo Greenhalgh, advogado de Cesare Battisti, merece tanta atenção quanto um camelô acampado no Pelourinho quando berra que o bandido italiano "não teve direito a ampla defesa porque foi julgado à revelia".

Adotado no Brasil, rotineiro nas nações civilizadas, sem parentesco com o arbítrio, o julgamento à revelia quer dizer que o réu não estava no tribunal no momento da sentença. Battisti não esteve porque não quis ou por falta do que dizer. Se fosse mesmo inocente, Battisti teria aparecido com o advogado – se faltasse dinheiro, a Justiça escalaria alguém – pronto para garantir-lhe a absolvição. Em vez disso, fugiu para a França e escondeu-se "em lugar incerto e não sabido". Por ignorar o endereço do acusado, restou ao juiz encarregado do processo intimá-lo pela imprensa. Como Battisti não deu as caras nem mandou representante, foi julgado à revelia. Ele sabia que tinha direito a ampla defesa. Só não sabia o que dizer.

Livro luta paraescapar da morte

Os cinco desembargadores que compõem a 18ª Câmara Cível do Rio de Janeiro vão decidir ainda neste verão o destino do livro Roberto Carlos em detalhes, a excelente biografia do Rei escrita pelo jornalista Paulo César Araújo. No ano passado, já transformada em sucesso de público e crítica poucas semanas depois do lançamento, foi condenada à morte por interdição judicial. Sem ter lido uma única página, Roberto Carlos conseguiu a captura dos volumes em liberdade e a prisão preventiva de eventuais edições. Um memorial do caso e um exemplar do livro foram entregues aos cinco eleitores. A votação também decidirá o destino da censura que não ousa dizer seu nome.

De onde menos se espera nunca sai nada

Pode um parlamentar de quinta ter uma ideia de primeira? Talvez, desconfiaram muitos brasileiros surpreendidos pela proposta do deputado Edmar Moreira, 2º vice-presidente e, por consequência, corregedor da Câmara. Aparentemente, queria transferir para o Judiciário os casos de polícia e os atentados ao decoro protagonizados por pais da pátria. Horas depois, ficou claro que a ideia apenas comprovava que certas demonstrações de covardia exigem de seus protagonistas muito mais coragem que qualquer ato de bravura. "Poderíamos, se tanto, votarmos a admissibilidade e encaminharmos para a Justiça, que é o foro competente", começou a desnudar-se. "Iríamos nos desobrigar de sermos acusados de parcialidade com relação a nossos colegas. Além disso, temos o vício insanável da amizade". Ao estagiar no Conselho de Ética, o autor da proposta absolveu todos os mensaleiros que encontrou pela proa. Quer continuar inocentando todo mundo, com o endosso da turma. O prontuário de Moreira informa que acha que não faltará jamais aos parlamentares a brandura do Judiciário. Um dos itens mais vistosos é o castelo de R$ 25 milhões que esqueceu de incluir nas declarações de bens. Depois de ter perdido de vez a vergonha, vai perder o cargo de corregedor. O substituto continuará inocentando delinquentes. A Justiça continuará tratando com misericórdia fortíssimos candidatos à cadeia. Mas os dois poderes ao menos não poderão culpar-se um ao outro pelo espetáculo da indulgência criminosa.

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