sábado, dezembro 06, 2008

CRISTOVAM BUARQUE

Solução definitiva

O Globo - 06/12/2008
 

Não faz muito tempo, o Brasil era um país dividido pelo debate entre idéias: economia aberta ou fechada; privatização ou estatização; democracia ou autoritarismo; socialismo ou capitalismo. Hoje, o debate ideológico se limita a cotas e bolsas. De um lado, os que negam aos pobres e negros o apoio de bolsas e cotas; de outro, aqueles que consideram bolsas e cotas suficientes para resolver o problema da pobreza e do preconceito. Parte da população é contra a distribuição de bolsas para pobres; parte considera que a distribuição de bolsas é suficiente para credenciar um governo. O mesmo acontece com as cotas. Parte é contra usá-las como instrumento para formar uma elite universitária negra; outra parte comemora a existência das cotas como se fosse a solução para todos os problemas que pesam sobre os negros brasileiros. 

Há uma razão que unifica os dois lados do nosso pobre debate: o desprezo aos pobres e excluídos, que caracteriza os formadores de opinião no Brasil. Tanto os que defendem quanto os que criticam bolsas e cotas. 

Aqueles que hoje são contra as bolsas, há séculos são insensíveis à tragédia de um país que condena dezenas de milhões de pessoas à fome e à miséria. Não defenderam no passado a revolução que era necessária para que as bolsas fossem hoje desnecessárias. E os que comemoram as bolsas como o grande mérito de um governo são insensíveis à tragédia de um país que condena parte considerável de suas famílias à necessidade de ajuda. Contentam-se com as bolsas, sem defender a revolução que permitirá abolir a necessidade delas. 

No caso das cotas é ainda mais grave. Os que são contra nunca se sensibilizaram com a exclusão de negros em nossa elite, e temem que vagas da universidade sejam ocupadas por jovens negros com alguns décimos a menos nas notas do vestibular. Os que são a favor de cotas lutam pela reserva de vagas, mas não para que todos terminem o ensino médio em escolas de qualidade; reservam lugares na universidade, mas mantêm a falta de concorrência por causa das multidões excluídas pelo analfabetismo e pela evasão escolar. 

Lutamos para manter privilégios ou incorporar os privilegiados, não para eliminar os privilégios. A crítica ética às bolsas e cotas está na defesa da igualdade educacional: em vez de impedi-las, torná-las desnecessárias. 

A seleção de futebol não precisa de cotas, porque a bola é redonda para todos; chegam lá os mais talentosos e persistentes. Só uma escola "redonda" para todos permitiria abolir a necessidade de cotas e de bolsas. Isso exige uma revolução na educação de base. Mas os defensores e opositores de bolsas e cotas desprezam o radicalismo da solução definitiva: a igualdade de oportunidades para abolir todos os privilégios. Que acabaria com a disputa atual de quem tenta restringir os privilégios ou fazer ter acesso a eles. 

Em um país com ânsia de justiça, bolsas e cotas são necessárias como paliativos, distribuindo pequenas ajudas aos pobres e pingando negros na universidade. Não devemos recusar esses instrumentos de discriminação afirmativos, mas tampouco comemorar a necessidade deles.

O Brasil é um país dividido, com uma sociedade partida. Bolsas e cotas são migalhas necessárias, jogadas de um lado para o outro, mas não levam a uma revolução que abra a porta por onde os excluídos atravessem para a modernidade, vivam plenamente sem necessidade de bolsas ou cotas. Essa porta é a escola igual para todos, capaz de quebrar privilégios e levar o Brasil a um salto civilizatório. 

Diante da pobreza de idéias, divididas na superficialidade e no simplismo, essa opção exige um debate hoje impossível. A prova é que um artigo como este será certamente recusado, tanto pelos que defendem quanto pelos que se opõem às cotas e às bolsas. Acostumados a defender ou condenar migalhas e pingos, lutam para manter os privilégios, sem buscar soluções que permitam dispensar as bolsas e as cotas. Mas isso seria querer demais da elite brasileira: porque não há bolsas nem cotas de lucidez e radicalismo, nem gosto por soluções definitivas. 

CRISTOVAM BUARQUE é senador (PDT-DF).

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